HORA DE JACQUES
Fiquem lá com os louvores
Que ofuscam o pensamento
Pois teimo a ver as cores
Onde outros veem cinzento.
- Como mudastes, Jacques – provocava-me o Álvaro, amigo do peito
desde que nos cruzámos pela primeira vez, já lá vão meia dúzia de lustros. –
Trazias os professores e funcionários num pé-de-vento e hoje tão calmo!...
Estás um homem feito e perfeito, rapaz.
- Pudera! – retorquia-lhe com roçada convicção. - A velhice tudo
corrige, mas, somado a isso, era forçoso mudar qualquer coisinha com tanta
gente a moer-me a paciência a toda a hora. O que tive de passar, valha-me Deus.
A atitude, a linguagem, a forma de encarar as pessoas, a sociedade
e o mundo alteraram e eram agora diferentes em mim. Para quem nunca fora além
das epidérmicas aparências, tudo era agora genuinamente espantoso. Poucos
acreditariam que daquela massa informe e bruta pudesse sair um excelente
polícia, um funcionário público do melhor que ainda se fabrica, ou um
licenciado que desse cartas nas barras do tribunal. Eis que vesti essa pele e a
outras mais importantes teria aspirado se a saúde tivesse correspondido aos
mais insistentes pedidos que alguém pode fazer à porta de quem dorme impassível
aos males com que se afligem os filhos de Eva. As partidas que me foi pregando,
ora a mim ora aos que me eram mais próximos foi o único obstáculo que, sem ser
intransponível, me obrigou a chegar mais perto do que cheguei a ter como
viável. Mas que novidade em tudo isto? Era assim que me via ao espelho dos meus
admiradores. Ainda me lembro de ouvir mais do que uma vez da boca do Tiago que
se tivesse a mesma capacidade de liderança que descobrira em mim, rapidamente
ia dirigir a associação de estudantes e lamentava que eu desdenhasse desse
objetivo pois achava que sempre o chamaria para me acompanhar. Se quiser falar
a verdade, ainda hoje se lembra dessa fase e do choque que representou para ele
ver-se ofuscado pelas minhas partidas na escola, no bairro, … por onde
passasse.
A distância apagara muitos contornos, mas alguns traços físicos
definiam-me. Bastava olhar-me atentamente para perceber que as orelhas fugiam à
simetria, sem mescla de culpa minha. Enquanto miúdo, fui objeto de zombaria por
causa dum defeito de fabrico a que era angustiosamente alheio. De pouco me
valeu tentar justificar essa cruel realidade com o fato de dormir sempre para o
mesmo lado e ter obrigado a orelha a adaptar-se ao peso e ao silêncio. Os
piropos repetiam-se e mais seriam se vissem que dava o pelo com facilidade.
Preferia que me considerassem mauzão. Podia afastar algumas moças, mas essa
imagem impunha algum temor quando se tratava de esgrimir argumentos ou ante
qualquer ameaça à minha integridade, pois sabiam que, onde me faltasse a força
da razão, imporia a razão da força. Nas minhas costas sabia da existência de
quem se servisse de uma série de lugares-comuns sem qualquer articulação que
tanto valiam para a defesa como para o ataque. Vivia indiferente a essas
disputas. Quiçá por isso ou por me sentir bem pela capital com a farda de
polícia, raramente era procurado pelos antigos companheiros e muito menos por
aqueles com quem mais cumplicidade conseguira estabelecer.
Os anos levam vida, recordações, tudo. No meu caso, parece que
arrumaram uma despensa onde havia muitas experiências marcantes, grande parte
delas com o sinete da asneira. Sim, é inútil usar eufemismos ao falar de nós
como fazem as avós quando se referem ao seu tempo. Naquele tempo que só elas
conhecem, e, por isso mesmo, ninguém pode contestar, elas e outras tais
constituíam a melhor colheita do criador desde que o mundo é mundo. Azar para
os que vieram a seguir. Para mim e tantos outros, para quem apenas sobraram uns
quantos atributos que ninguém, dos tempos áureos, ousaria reivindicar para
nada!
Ainda hoje chegam aos meus ouvidos, gritados pela memória ou por
alguma nostalgia saudosa, os ralhos permanentemente esganiçados do ferreiro de
Fonte do Melro cada vez que me avistava. O homem deveria acreditar que por
força de tanto insistir lhe havia de restituir a cavilha que apliquei ao pião
para destruir os da disputa. Nem pensar! Se o meu pai se viu obrigado a pagá-la
acima do valor real, havia de lha devolver? Como podia ser tão pedante o desalmado?
O homem estava pirado de todo! Se lhe fazia falta para a ferragem do carro que
lhe haviam encomendado, que arranjasse outra e a pusesse a salvo para prevenir
surpresa igual, mas, entretanto, que me deixasse em paz. Foram estas e outras
injustiças menores que começaram por me revoltar deveras. A partir daí foi
sempre a abrir. Enquanto me cruzasse com esses monumentos, havia de lhes deitar
em cara para meu consolo e enrubescimento deles que a cartilha por eles vasculhada
era mais perversa do que a que me fora ensinada pelas leis da vida. É verdade!
Aquela arrogância e arrotos de bondade provocavam-me vómitos e vontade de lha
pôr à prova a toda a hora. Ria-me como um danado ao descobrir que afinal
conseguia levar a melhor sobre aqueles moinhos de vento ou marionetas mais ou
menos emproadas. É essa imagem de provocação aos adultos postiços que conservo
de mim mesmo. Foi tempo.
É verdade. Sentia-me bem naquela pele, mas percebia que as minhas
atitudes incomodavam em casa, na escola e mesmo no bairro. O estigma que me
colocaram tinha o seu fundamento, porém mal imaginava toda aquela gente o
prazer que tentavam proibir-me. De proibição em proibição, a certa altura
começava a sentir-me estranho na minha própria casa pois tinha a certeza que
tudo o que fizesse seria avaliado sempre pelo lado negativo. Vejam a minha
desgraça: até a boca tentavam açaimar-me para me impedir de cair na tentação da
gula. Os argumentos eram de rir. Quando minha mãe queria proibir-me de comer
qualquer coisa, voltava-se para mim de mãos na cabeça a gritar que fazia mal
aos dentes. Desconheço o que mais me atormentava se era aquele ar de
desgraçadinha que ela assumia perante a possibilidade do meu crime infantil, se
o ar assustador como me tratava se as lágrimas usadas ao lavrar a sentença, se
aquilo que me podia acontecer se continuasse com a mesma vida. Traduzia-lhe
essa convulsão de incertezas como podia. Perante o meu olhar atónito e a
confissão da minha incredulidade, argumentava-me com a boca desdentada da minha
avó, Liberata.
- Olha para a tua avó, Jacques. Ela também gostava muito disso e vê o que lhe aconteceu.
Há gente que olha sem ver
E gente que vê sem olhar
Tu ainda tens a aprender
O que interessa é começar.
Achava que a mãe Liberata, como gostava de tratar carinhosamente a
mãe da minha mãe, tinha gostos refinados. Então por gostar de arroz-doce havia
de lhe acontecer aquela desgraça? Claro que às vezes metia uns caramelos ao
bolso para ir distribuindo por mim e pelos meus primos, mas havia de ser outra
a causa da queda dos dentes dela.
- E sabes, ficou com a cara inchada como uma bola. O pior foi ir
ao dentista para lhos arrancar – continuava minha mãe. – O senhor doutor teve de
lhe pegar com uma tenaz medonha. Ora foi, mamã? – perguntava ela a minha avó.
Calava-se àquela pergunta para fugir a ter parte nessa imagem de
pavor que estava a formar do dentista. Respondia de forma expedita e evasiva:
- A tua mãe é parecida comigo, filho: gosta muito de brincar. Isso
é muito bom. Também era assim... Agora...
Nessa altura ainda admitia pudesse haver apenas bons médicos, mas
lembrava-me muito bem da imagem das enfermeiras que me vacinaram e do susto que
fora ver a agulha com que logo me iam picar. Se além das agulhas ainda tinha de
passar pela provação de ter que abrir a boca para um estranho me mexer nos
dentes com uma tenaz, estavam fora de questão as contas com essa gente.
Naquela ingenuidade infantil que bebe as palavras solenes dos
adultos sem ousar pô-las em causa, o meu espaço de manobra ficava extremamente
limitado e a decisão impunha-se sem dificuldades: pois que assim era,
privar-me-ia das coisas que, no entender de minha mãe, podiam atirar-me para as
mãos do dentista. Houve coisas a que foi impossível dar remédio: mal entrara
para a escola primária, os dentes foram caindo sem culpa nem mérito da minha
parte e no seu lugar apareceram os novos, tortos uns e direitos os outros, sem
que tivesse que fazer nada de especial. Foi por causa dos que se atreveram a
crescer tortos que minha mãe voltou a falar na eventualidade duma ida ao
dentista.
- Vais ter de usar um aparelho, Jacques – vaticinou ela. – Com uns
dentes assim, as raparigas fogem de ti a sete pés ou achas que havia de
aparecer alguma que te quisesse. Apreciaste-os bem ao espelho?
Ela desconhecia o tempo que gastava a mirar-me e remirar-me ao
espelho a ver se aparecia a barba e, definitivamente, podia entrar no grupo dos
grandes, daqueles que podiam ler todo o tipo de revistas e ver todo o género de
filmes. Aos dentes nunca tinha prestado uma atenção particular, mas aproveitei
a sugestão para o fazer.
- Ainda estão a crescer – defendia-me decidido. – Na verdade, noto
que alguns estão muito tortos, mas tudo se há de resolver sem problemas: com o
uso acabam por ficar bem.
- É um erro, filho. tem de se fazer alguma coisa agora. Depois é
tarde.
Concordava com tudo aquilo, mas pensar que para ter uns dentes
bonitos tinha de ir ao dentista atemorizava-me. Confessá-lo com esta
frontalidade, tanto na escola como em casa, era impensável e, por isso,
desculpava-me das formas que encontrava.
- Antigamente ninguém ia ao dentista e também viviam. O avô ainda
tem os dentes todos e, segundo ele, nunca foi a um médico. Quero ser como o
avô.
- Aquilo só dói um bocadinho, Jacques. Coloca-te um aparelho nos
dentes e pronto: os dentes vão ficando direitos sem te aperceberes.
- Quero a boca livre de objetos estranhos. Depois nem podia comer
nem falar como a outra gente. Nem pensar! Os meus amigos riam-se de mim e
haviam de pensar que sou algum medricas.
- És parvo! Quando te habituares hás de ver que nem te lembras
mais que o trazes. Quando vir alguém que use, indico-to para poderdes
conversar.
- Aceito desde que a lição seja dela em vez de ser tua.
- Ó filho!...
Passou uma semana e minha mãe sem indicar uma pessoa que usasse
aparelho. Convenci-me que se tinha esquecido. Nisto leva-me à presença do Lucas
e pede-lhe para me mostrar o aparelho que usava. Abriu a boca desembaraçado.
Lembro-me muito bem que a primeira reação que tive foi desviar o olhar, tão
pouco interessado estava no caso. Depois fixei-me na configuração e gostei.
- Custa muito a usar uma coisa dessas, Lucas? – perguntei arisco.
- Nem me lembro que trago o aparelho. Só me lembro quando tenho de
à revisão.
- Revisão? Então porquê?
- Sei lá. Habituei-me de tal modo que, sem a ida regular a acertar
as medidas, nem me lembraria que o trago na boca. É apenas o que te sei
explicar. Com as outras pessoas também é assim. Sabes quem usa mais? A
Clarinha. Fala com ela.
Estava incomodado com aquela de ter que ir de vez em quando a um
desapiedado dentista para acertar aquela armação. Só podia ser muito dolorosa
uma intervenção dessas pois teria de mexer com todos os dentes. A história
estava a ser mal contada. Afinal era necessário ir muitas vezes, quando pensava
que bastaria uma consulta, prender-me uns arames aos dentes e pronto. Tudo
aquilo devia ficar por uma pipa de massa. Cada vez gostava menos desses
artistas da tenaz que ganhavam a vida à custa de nos fazer sofrer. Continuaria
a ponderar se me convinha alinhar por aí.
Falei com a Clarinha. O paleio repetiu-se. A diferença estava na
aparência do aparelho: o dela pareceu-me mais bonito. Devia ser novo e por isso
tinha um brilho especial.
- Quando o compraste, Clarinha? Ainda parece novo. E queres saber?
Numa moça com a tua beleza
Tudo parece talhado a preceito
E esse aparelho, com certeza,
Parece-me em ti mesmo a jeito.
- Foi há pouco tempo, há menos de meio ano. Gostas mesmo, Jacques?
Obrigado. Fico tão feliz.
- O aparelho que o senhor doutor me quer pôr também é assim? –
perguntei a minha mãe.
- Depois é que escolhemos. Tu gostas deste?
- Deste... Gosto de o ver na Clarinha.
- E para ti? Queres um igual?
- Ó!...
- Então vou marcar a consulta para ti. Qual foi o teu dentista,
Clarinha?
- Olha que pergunta! Sei lá! Só me lembro que foi um dentista de
Vila Rolinha que só dá consultas às terças e sextas. Quem sabe é a minha mãe,
mas é um que tem o consultório ao pé da farmácia. O último nome acho que é
Pereira, mas é escusado estar a tentar adivinhar. Pergunte à minha mãe.
O que aquela rapariga sabia?! Falava do dentista como se estivesse
a falar da professora ou do pai. A minha alma ficara gelatinosa. Tremia em
substituição do corpo que ficara tenso junto de uma rapariga da minha idade.
Era intolerável que parecesse mais caguinchas do que ela.
Minha mãe soube o nome do médico e marcou uma consulta para mim.
Tive sorte: só me podia atender dali a um mês. Nesse compasso de espera podia
mentalizar-me. É o mentalizas? Cada dia que passava ia ficando mais apreensivo.
E se ele me desse alguma injeção? E se ele me metesse uma tenaz na boca? E se
ele me arrancasse os dentes e me pusesse a boca como a da minha avó?
A marcação da consulta ensombrou-me a alma, mas os meus desatinos
na escola continuaram: gostava de
levar todo o tipo de animais vivos que me viessem à mão. Cobras, sapos,
morcegos, grilos ou lagartos, tudo me servia para boicotar a primeira aula da
manhã e pregar um susto à Beatriz e à sua companheira de mesa que,
invariavelmente, soltavam dois gritos histéricos antes de colocar a mão em
frente da boca para os abafar. Quando tal acontecia, era inevitavelmente
convidado a sair da sala.
- Lá vai o Jacques para a rua e logo à primeira hora – protestei
esquivo. – É sempre à 1ª hora. Que fada! Stôra deixe-me ficar só esta vez. A
minha colega desculpa-me, ora desculpas? – perguntava-lhe solícito, sabendo que
nem sequer ouviria o meu árido apelo. - Prometo que me porto como um homenzinho
em relação à professora e à turma e como um cavalheiro para a Beatriz.
A professora era daquelas que reagia bruscamente quando se
apercebia que alguém queria fazer o ninho atrás da orelha. De dedo espetado,
insistiu austera na indicação da porta. Saí. O que mais me custava era deixar
para trás o meu amigo pois andava sempre a caldeira e a caldeirinha. O Tiago
achou aquilo uma tremenda injustiça e, por ter manifestado o seu desagrado com
meias e tarameladas palavras, teve a mesma sorte. Éramos solidários na desgraça
e, por se repetir a miúdo, habituados a estas prendas logo pela manhã.
- Tens a mania de quereres dar tu a aula de Ciências... A
professora é que vai logo aos arames e olha...
- Mas hoje era cá um sapo dos valentes!...
- Boa, meu. Asqueroso. Até o Ricardo grandalhão lhe guardou
respeito. A este tinha-lhe medo para o pôr a fumar.
- Queres saber a última? A minha velha quer levar-me ao dentista
para me pôr um aparelho nos dentes. É amanhã!...
- Comes mal, ou é algum arganel?
- T’ás maluco. É por estarem tortos. Ora olha para aqui – e
abria-lhe avaro a boca impedindo que saísse o mau hálito.
- Tou a ver. Tens os dentes maiores do que a boca – gracejou.
- Onde está a piada? E se fizesse uma partida ao dentista?
- Fixe, meu. Queres levar o sapo?
- É muito grande. É melhor arranjar qualquer coisa menor. O sapo é
muito grande. Queres ir comigo? Se formos os dois, é rápido que arranjamos
alguma coisa à maneira.
- E a aula de Matemática?
- Que se lixe! A aula é uma seca.
Em minha casa, as faltas são pouco importantes. A velha o que quer é que
lhe saia da frente para ter algumas horas tranquilas pois, sempre que estamos
juntos, passa-se comigo.
- Vamos até ao rio? Ali podemos arranjar várias coisas.
- Estamos nessa.
Fomos. Depois de colocarmos armadilhas e esperar algum tempo sem
sucesso, eis que apareceu algo surpreendente a que nem sabia como pegar.
Repugnava-me, mas ia causar furor.
- Vais levar isso para o dentista? – perguntou-me desabrido e cético
o Tiago.
- Claro. E que bela surpresa vai ter! Aposto que se vai lembrar
sempre de mim. Depois conto-te.
Guardei o achado como pude. Regressei a casa mais tarde do que era
costume e minha mãe fez apenas uma observação impercetível que deverá ter sido
de ameaça. Dirigi-me para o quarto com a justificação de ir fazer os trabalhos
de Matemática.
- Come qualquer coisa antes, Jacques – aconselhou-me minha mãe. –
O jantar está demorado porque…
- Estou bem. Espero o tempo que for necessário.
Fui para o
quarto. Pousei e abri a mochila com cuidado e retirei de lá o meu presente. Com
movimentos suaves agarrei no animal e meti-o dentro da caixa dos sapatos que
tinha no quarto.
- A consulta é amanhã, Jacques – recordou-me a minha mãe como se
fosse a melhor boa-nova para esse fim de tarde em que me via tão arredio.
- Nem me lembrava – disfarcei. – Que chatice! Então tem mesmo que
ser? Se pudesse ser adiada...
- Fazer isso é muito mau, filho. Estivemos um mês à espera e agora
faltávamos, era?! Nem pensar uma coisa dessas.
Passei a noite às voltas com o travesseiro. Duvido o que mais
mexia comigo, se a perspetiva de fazer das minhas no consultório, se o medo ao
dentista. Minha mãe insistia que tinha de ir, era impossível inverter a
situação. Fui.
No consultório, entre minha mãe e estranhos, o medo era superior
às minhas forças. As pernas tremiam indiferentes à minha arrogância e
intenções. Envergonhava-me pela incapacidade em conseguir controlar-me, mas há
dias assim. Nisto aparece a funcionária com ar vitorioso a anunciar:
- Quando sair a senhora que está a ser atendida, és tu. Está a chegar a tua hora, Jacques.
Tinha um plano muito secreto
Que nem sequer eu conhecia:
Fazer algo inédito e concreto
Que marcasse bem esse dia.
Apeteceu-me fugir, mas os meus doze anos eram incompatíveis com uma
atitude dessas. Um rapaz da minha idade é capaz de aguentar com uma dor de
dentes quanto mais com a colocação de um aparelho. Além do mais tinha de dar
utilidade ao meu trabalho do dia anterior. Quando me lembrei disso, fiz-me
forte. Certifiquei-me que o animal ainda estava vivo. Estava a fazer os
preparativos para que depois pudesse sair livremente quando a funcionária
aparece à porta e me anuncia:
- Chegou a tua hora, Jacques.
- Deixe-me só ir à casa-de-banho.
A minha mãe protestou por esperar até àquela hora.
- Só te lembras agora? Olha o desplante!
- É só um minuto.
Meti a caixa de novo no bolso e abri-a. A tarântula peluda e
grande tinha o caminho aberto. Sairia quando quisesse. Corri para o
consultório. Minha mãe esperava-me à porta pedindo que a poupasse a mais uma
vergonha. A enfermeira que me recebeu foi simpática e tratou-me como se fosse
cliente de longa data. Deu ordens à enfermeira para que me preparasse enquanto
se retirava para um estúdio lateral. Aquela, com excessos de simpatia,
colocou-me um babeiro.
- Só falta a papa… – resmunguei.
- Perde cuidados, Jacques – retorquiu a enfermeira. – Vem aí a
massa.
Começo a sentir um movimento lento no bolso. Continuei sem me dar
por achado. Ao tato parecia-me execrável, nefasta e ominosa. Era o que me
convinha. Quando os apanhava distraídos, alargava a saída do bolso para que caísse.
Estava a brincar comigo. Continuava quieta em vez de sair.
- Está pronto, senhor doutor – anunciou a enfermeira. – Quando
puder…
Sem retirar os olhos do papel, esboçou um gesto sedativo enquanto
rascunhava um formulário da cliente anterior. Guardou o impresso e recebeu-me
sorridente:
- Ora vamos lá ver este homem. Estás a tremer?
- É impressão sua ou será do frio?
- Vais deitar-te nesta maca e abrir bem a boca.
Cumpri ordens. Apontou-me uma lâmpada para a boca e começou a
tocar-me nos dentes. Duvido se terá poupado algum ao seu toque certeiro para
medir se estava são porque estava concentrado nos movimentos da tarântula e a Leste
do que se estava ali a passar. Apercebi-me que ela saiu. Todos estavam tão
concentrados nos meus dentes que nem se aperceberam que ela percorreu
lentamente a minha perna. A colocação do molde com a massa no meu maxilar
superior aproximou ainda mais o médico de mim. A tarântula agarrou-se-lhe à
bata. Quando se apercebeu, assustou-se e deu um salto violento para o extremo
do consultório. O material espalhou-se pelo chão e ouviram-se gritos histéricos
da enfermeira, da funcionária e de minha mãe. Fiquei de boca aberta e molde na
boca enquanto as coisas acalmaram. Via vassouras no ar e ouvia o barulho do
arrastar de cadeiras até matarem o animal. Mantive a postura.
O médico pediu repetidas vezes desculpas e culpou a empresa que
limpa o consultório de estar a prestar um serviço sem a qualidade necessária.
Prometeu que me colocaria o aparelho de graça em troca do silêncio sobre o
caso. Só depois é que concluiu o trabalho que estava a fazer.
- Que foi, mãe? – perguntei ao terminar a consulta.
- Deixa lá, Jacques. Está tudo resolvido. A funcionária matou-a e
atirou ao lixo.
- Atirou com o quê?
- Ah, pois... Tu estavas deitado e perdeste o melhor. Era uma
tarântula como nunca vi. Aquilo metia medo.
- E onde estava?
- Tinha-a o médico na bata. Só a vi no chão.
Quando saí, os clientes que estavam à espera quiseram saber o que
se tinha passado. Respondi que se tratara de uma coisa sem grande importância.
Minha mãe confirmou. Depois, olhou para mim e concluiu:
- Em boa hora nós viemos, Jacques.
Olhei para a porta do consultório pelo canto do olho e com um
sorriso matreiro de vitória respondi:
- Nem queiras
saber... Há horas assim.
No dia
seguinte, quando contei tudo ao Tiago, pensou que lhe estava a relatar um
sonho.
- Aguarda a
resposta: qualquer dia hei de fazer uma melhor – prometeu-me.
Enquanto ele
decide o que vai fazer, estou a maquinar a resposta. A única pessoa que sabe
das minhas intenções é a Beatriz porque lhe levantei parte do véu.
- O Tiago
considerava-se o maior da escola, mas foi destronado de vez – concluiu ela.
Júlio Rocha (14/7/2025)
Parabéns por este conto.
ResponderEliminarUm abraço