CASTIGO
Até para ser animal
É preciso alguma sorte
Há quem ache natural
Que sofram até à morte.
As calças do Carlos davam mais trabalho à mãe do que a
roupa do resto da família junta. Os remendos das calças eram tão frequentes que
a mãe o ameaçara que qualquer dia o obrigava a andar despido se lhe aparecesse
com as calças rotas. O miúdo desfazia-se em promessas que seria a última vez,
mas, quando surgia a oportunidade, esquecia-se de tudo e deixava-se levar pelo
impulso e pela fantasia do momento. Onde avistasse um ninho, era fatal como o
destino que havia de chegar indiferente aos danos que se pudesse causar ou aos
estragos que provocasse na roupa. A mãe protestava. Que assim era impossível,
que tinha de mudar de atitude, que todos os pássaros juntos valiam menos do que
um par de calças, que havia de o acusar à guarda, que… Nada. Indiferente às
ameaças e aos castigos, o malvado do rapaz queria lá saber do que os outros
pudessem pensar? Antes o fizesse e saberia que, em toda a região, era quem mais
mal fazia à passarada.
Naquele dia, a mãe, conhecedora do que tinha em casa,
recomendara-lhe antes de partir que se livrasse de andar a subir às árvores e
fizera-o jurar que ia mesmo cumprir a promessa.
- Lembra-te que os sapatos estão praticamente novos e
as calças foram estreadas na semana passada.
- Está bem – volveu-lhe com enfado enquanto lhe voltava
costas para guiar as vacas ao lameiro. – É desnecessário estar sempre aos
berros.
- Prometes?
- Prometo. Juro que jamais volta a acontecer.
- Vê lá se te recordas bem da jura que fizeste! –
gritou-lhe antes que virasse a primeira esquina, para evitar que ficasse alguma
dúvida sobre o empenho que colocava naquele pedido. – Arranco-te as orelhas,
hás de ver como aprendes a lição! E tu, Mariana, vê o que faz e depois conta-me
tudo.
Demasiado tarde. Desaparecera sem que se ouvisse a
resposta, mas acreditamos que, perante a dureza da sentença, naquele momento,
só podia ser afirmativa. Porém, logo que deixasse de estar sob a sua alçada, passaria
a irmã para o seu lado e a atração pelas alturas falaria mais alto do que todos
os puxões de orelhas experimentados ou prometidos.
- O ninho deve estar perto, Mariana – concluía o Carlos
depois de observar detidamente os movimentos repetidos dos tordos que passavam
à sua frente com o alimento para os filhotes. – É ali mesmo à frente. Ora
deixa-me acompanhar o movimento da mãe. Leva comida no bico e tem-se dirigido
sempre para aquele carvalho. Anda aí de diante para trás e de trás para diante,
vê-la?
- Percebo pouco de ninhos, mas tenho cá as minhas
dúvidas. Os pássaros também têm as suas artes de iludir. Podem estar perto, mas
duvido que eles o denunciem tanto. Então haviam de ser a mãe expor assim à
morte os filhos?
- Ninhos são comigo. Há para aí cinco anos que só faço
isso quando venho com as vacas. Começo a conhecer todos os segredos da
passarada.
- Nem por isso te dou os parabéns. Viste que a mãe
começa a ficar cansada de te chamar a atenção e as ameaças vão subindo de tom.
Ouviste que agora quer que lhe conte tudo? Que hei-de fazer? Se lhe minto,
sobra para mim e é pior a emenda do que o soneto.
- Vais contar? Vê lá no que te metes!
- Queria proteger-te, mas se continuas assim, qualquer
dia vou ter de te denunciar.
- É só hoje. Estou mesmo interessado em descobrir onde
se escondem estes tordos. Quando os tiver no bolso, até tu vais gostar de os
ver.
A previsão sobre a reação futura da irmã tinha suporte
no passado: todas as vezes que ele lhe aparecia em casa com alguma ninhada ela
ficava feliz e associava-se ao festim. É claro que os livros que usava
apontavam para maior respeito em relação a essas criaturas, mas esquecia-se
desse pormenor por momentos.
A Mariana pôs-se a ler mais uma aventura levantada na
biblioteca ambulante que passara na aldeia naquela semana. Era o tipo de
literatura que casava bem com a sua idade e as suas dificuldades de leitura. O
Carlos levara um livro da escola, mas ainda nem sequer o tirara da pasta, tão
concentrado estava nos tordos. Aquilo que começara por ser uma suspeita, estava
a transformar-se rapidamente em apelo.
- Tenho quase a certeza que só pode ser ali. Que
achas? Ora presta atenção só um minuto.
- Como posso desmentir-te? Se me falasses de coisas
que soubesse…
- As raparigas são todas iguais: admitem que desconhecem
tudo sobre o assunto mas sempre vão dando os seus palpites. Tens reparado? Quando
os pais vão para ali, levam a comida no bico e quando saem é sem nada. Que se
pode concluir? Mais: quando vim para aqui com os animais, na semana passada,
andavam neste vaivém. Os pássaros devem estar grandes.
- Uma semana? Onde estarão os pássaros se te apercebeste
há uma semana que poderiam estar nascidos?! Bateram asas e fugiram. Uma semana
é muito tempo na vida de uma ave acabada de nascer.
- Percebes pouco disso, está visto. Quando a ninhada
sai do ninho, os pais deixam de lhes buscar comida. Se continuam a transportar
comida no bico… Além disso, se tivessem saído haviam de andar por aí a aprender
a voar e nada.
- Gosto muito desses momentos. É divertido. Parecem
uns tontos a dar às asas sem jeito sob o olhar da mãe.
- Eu cá gosto pouco. Se os descobrisse antes de voarem,
é que era bem. Davam uma arrozada...
- És estúpido. É prejudicial fazer isso. Temos que
proteger os animais e a natureza em geral.
Os argumentos da Mariana mal eram ouvidos pelo irmão
quanto mais deixar-se convencer. Continuava avidamente a busca e só deixaria de
o fazer quando o encontrasse.
- Deve ser aquilo que vejo naquele ramo. Mas fica tão
alto... E agora?
- Acharia normal. Alguma vez pensaste o que seria se o
ninho estivesse ao alcance da mão? Assim, qualquer pessoa o podia destruir.
Estando alto, nem todas as pessoas o conseguem atingir.
O Carlos apontava para um ramo do carvalho onde julgava
estar o ninho pela certa. A irmã negava que visse alguma coisa e pintava a
subida com cores negras.
- Por uns pintassilgos ninguém se mete em trabalhos,
mas uns tordos são uns tordos. Se soubesse que era mesmo o ninho, atrevia-me a
subir. O problema é se chego lá e nada...
- Certificas-te antes enquanto eu guardo as vacas e a
burra, queres?
- É desnecessário. Escondemo-nos os dois e esperamos
que os pais venham novamente com comida. Sempre veem mais quatro olhos do que
dois.
Quietos e silenciosos ali ficaram atrás do silvado em
vigilância permanente, com um olho sobre o que julgavam ser o ninho e outro
sobre os movimentos das aves. As vacas e a burra continuavam praticamente
estáticas, ocupadas em aproveitar a muita erva que ficara após a retirada do
feno.
Em múltiplas ocasiões viram chegar os tordos, perderam-lhe
o rasto por momentos e viram-nos partir depois felizes pela missão cumprida.
- Ora bolas! Aquilo são ramos secos – concluía o Carlos.
– Olha se subia!...
- Eu bem te recomendo que evites essas coisas, mas tu nunca
me dás razão. Se a mãe desconfia que rasgas as calças a subir às árvores...
- Se ninguém lhe contar nunca descobre. Livra-te de
lhe cochichares alguma coisa. Nunca mais vinhas comigo.
A ameaça de dispensar a sua companhia, que funcionara
noutras alturas, também asseguraria o completo silêncio da irmã num momento em
que a tentação era superior a todos os argumentos em contrário que apenas iam
adiando o ataque final.
- Tu vais negar tudo, pois vais? Eu bem queria ser
como tu e deixar os pássaros em paz, mas é difícil.
- Alguma vez revelei alguma coisa? – perguntou ela em
sua defesa pois achava que o passado era o melhor argumento sobre as suas
intenções relativamente ao que estava a acontecer ou ao futuro.
- Mas às vezes... Como estás sempre contra mim por
andar aos ninhos, tenho medo que...
- Podes ficar descansado que eu calo tudo. A minha
professora é que nos ensinou que devemos respeitar os animais e tu às vezes...
Eu... Gosto mais de ver os pássaros a voar do que de os ver num prato.
O Carlos continuou com as buscas. Cada árvore foi observada
e medida de alto a baixo. Antes de descobrir o ninho procurado, viu outros que,
mesmo sem os poder observar mais de perto, identificou como sendo de ave
minúscula e desprezível.
- Está ali um que parece de tordo – anunciava ele concentrado
no ofício e indicando o ramo mais altaneiro de um carvalho centenário debruçado
sobre a parede do lameiro. – É garantido. Pelo tamanho...
A ligeira hesitação do irmão e o contragosto com que
se via envolvida numa aventura dessas fizeram com que a Mariana demorasse a
localizá-lo. Quando finalmente descobriu o ponto exacto para onde apontava o
indicador do irmão, concordou e até lhe pareceu que via qualquer coisa a mexer.
- São maiores do que o ninho – opinou ela. – Devem estar
muito grandes ou então são muitos.
- Eu bem te avisei. Mais um dia e iam embora.
O Carlos teve um rebate de consciência. Lembrou-se dos
sapatos que trazia nos pés e olhou-os demorada e impacientemente. Sentira tanta
vaidade quando os estreara por ocasião da primeira comunhão e agora ia subir à
árvore com eles? Parecia-lhe um exagero. Mas também gastara tanto tempo a
acompanhar os movimentos dos tordos até chegar aquelas criaturas e agora havia
de as deixar sem ao menos sentir o consolo de as tocar? Era o deixas! Buscava
uma saída que lhe protegesse os sapatos e lhes colocasse ao alcance da mãe
aquelas aves que adivinhava grandes e gordas. Coçou a cabeça. Repetiu o gesto
interrogativo e um estalar de dedos anunciava o final de um parto difícil, como
se a solução estivesse à mistura com a caspa do cabelo.
- Sei como faço – anunciou radiante à irmã. - Tenho
que subir descalço.
- Descalço? Ninguém sobe a uma árvore descalço! Esqueceste
o que te aconteceu?
- Da outra vez feri-me muito por culpa minha, mas desta
vai ser diferente. Se subir com cuidado, consigo defender-me dos ramos secos e
tudo há de acabar em bem. tem de ser assim para poupar os sapatos. Ficam-me
caros os tordos, mas quero lá saber?! Desistir nem pensar.
- Adiavas. Deixavas para amanhã e trazias as sapatilhas.
Também por mais um dia...
- Se tu fosses a casa buscar as sapatilhas é que era
bem. Vai lá.
- É tão longe... Voltamos amanhã. Juro que venho contigo.
É melhor para os dois.
- Experimento. Acho que vou conseguir. Se tiver de
desistir a meio é que voltamos amanhã. Pode ser?
Só podia aceitar. Deitou mãos à obra, isto é, começou
a subida pela dureza daquele tronco a passo acelerado em baixo e a contar os
passos logo após. A cada movimento do irmão, Mariana sentia em si a dureza
daquele tronco, daqueles ramos. A partir do meio apoderou-se dela um sentimento
tal que duvidava de qual tinha mais pena: se do irmão que arfava de cansaço no
último ramo se daqueles pais que procuravam salvar os filhos com todas as
forças de que dispunham e através de gritos lancinantes.
- Desiste, Carlos. Tenho cá um pressentimento que ainda
vai acontecer alguma coisa de mal.
- Deixa-te de futurar desgraças ou tenho uma irmã bruxa?
Vira para lá essa boca, rapariga.
- Desculpa lá, mas até se me aperta o coração com todo
este piar. Ouve-los?
- Deixa lá. Quando formos embora calam-se.
Era o calas! Macho e fêmea acompanharam os meninos no
seu regresso a casa e mantiveram-se em comunicação permanente com os filhos
como quem os quer resgatar a qualquer preço. A burra só a tempos conseguia
abstrair daquele festim. A cabeça e orelhas levantadas traduziam a anormalidade
da situação em que se via envolvida e os seus movimentos bruscos manifestavam a
pressa em se ver livre daquele pesadelo. O encontro com um réptil, ave ou inseto
deixava-a tão nervosa como se qualquer um deles tivesse culpas no cartório.
- Está tão espantada! – achava a Mariana. – Um animal
tão pachorrento e hoje com tanta energia!... Temo que ainda vá acabar mal.
- Deve andar com cio – justificava o irmão. – Teve a
mesma reação muitas outras vezes.
- Será. Logo havia de ser hoje!...
Ainda as palavras iam no ar quando a conversa entre os
tordos subiu exageradamente de tom. Num movimento irrefletido o Carlos
libertou a mão que segurava a arreata do animal para a levar ao bolso. A burra
agitou-os com tal violência que, em menos de um credo, os dois irmãos se viram
estendidos no chão preocupados com eles, com a mãe e com os pássaros.
- Eu bem te anunciei que adivinhava desgraça – chorava
a Mariana. – Tu só fazes o que tu queres... E agora a mãe?
- Deixa lá, isto passa. Sacode bem o pó do vestido
para ninguém desconfiar de nada.
- Mas eu feri-me muito. Olha aqui para as minhas mãos
– e mostrava-lhe as mãos repletas de uma massa informe de sangue e poeira.
As vacas e a burra solidarizaram-se com os donos e
tranquilamente esperaram ordens para avançar, entretidas a aproveitar umas
ervas que conservavam algum viço mercê da sombra das oliveiras.
- Aconteceu alguma coisa – perguntou um vizinho que se
abeirou entretanto.
- A burra espantou-se – gemeu a Mariana.
- Deixai-me ver se tendes alguma coisa partida.
Pegou em cada um deles de sua vez e num suave movimento
esticou-lhe a coluna. A da Mariana reagiu sem dar qualquer sinal que inspirasse
cuidados, mas a do irmão estalou como se houvesse vértebras que acabavam de
voltar ao lugar onde sempre deveriam ter estado. O rapaz bem queria mostrar a
sua virilidade retendo as lágrimas, mas, quando sentiu todo aquele alívio,
soluçou:
- Sem o senhor, era impossível chegar a casa. Sinto-me
melhor, mas deixe-me ficar aqui mais algum tempo à espera, que passe de todo.
- Nem penses nisso. Eu levo-te a casa. Se precisares
de ir ao médico, convém ganhar tempo. A tua irmã parece estar bem, mas tu...
- Estou bom. Doía um bocado, mas passou. Ora passe a
mão pela minha coluna e vai ver como está tudo bem comigo.
O ranger dos dentes do rapaz evidenciava o esforço que
estava a fazer para que tudo ficasse entre os três. Foi impossível levar o
esforço até ao fim e um fundo gemido confirmou o que estava a tornar-se
evidente: ferira-se na queda.
- Tanto trabalho para isto. Por quantos tordos há, era
melhor poupar-me a ouvir a minha mãe quando chegar a casa neste estado.
- Os tordos? – admirou-se o vizinho. – Foram uns tordos que espantaram a besta? É bem decerto:
Quem te manda mãe aladaTer pressa em fazer o lar?
Enquanto houver criançada
- Que lhe vais fazer agora?
- Sei lá... Nada. Tanto trabalho para nada. Nunca
mais!... É preferível vir com as mãos a abanar. Se a mãe descobre, ainda é
maior o castigo.
Júlio Rocha (20/2/2025)
Prof. Júlio adorei este conto.
ResponderEliminarTransportou-me para a minha infância, não que eu fosse aos ninhos, mas pelas corridas pelos campos cheia de alegria.
Muito obrigado pela sua partilha.
Parabéns pelo conto
ResponderEliminarUm recuar á infância.
Gostei particularmente deste conto, talvez pelo narrativa que nos conduz a tempos saudosos da infância. O estilo afirma-se límpido, claro, corrente, profusamente dialogado, e sem grandes metáforas que, por vezes, tornam o texto muito pesado.
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