RATOS

Como os ratos nos deixam pistas

Por serem animais incontinentes

Assim os incendiários oportunistas

Por mais que se julguem prudentes.

 

Aquilo que os jornalistas teimavam em difundir como notícias deixara de o ser por uma razão clara: mais parecia que algumas reportagens exibidas à saciedade em horário nobre tinham si ali colocadas para distraírem um país que estava a banhos do que por refletirem a preocupação de encontrar soluções para a floresta. Bastava mudar de canal e o guião mantinha-se previsível, enfadonho e provocador cada vez que os ouvintes ou telespectadores tinham oportunidade de ver o telejornal. O local podia variar, mas as chamas lavravam um pouco por toda a parte e os discursos de circunstância eram sempre os mesmo com lamentos de quem perdia os seus bens e promessas sem qualquer intenção de serem cumpridas por parte das autoridades civis e militares: mais efetivos, mais meios, mais vigilância e mão pesada da justiça. Desde há uns anos a esta parte que vinha sendo assim. A única variável era a pluviosidade, segundo os repórteres de serviço: quanta mais chuva viesse durante a primavera e início do verão, mais e maior seria a probabilidade e a dimensão dos incêndios. Mas?!... Como?!...

A palavra incêndios assusta-me e provoca uma série de reações de pânico em cadeia. A primeira imagem que me vem à memória é a ameaça a que esteve exposta a minha humilde e doce casa de infância num quadro que me marcou ao longo dos trinta anos que medeiam entre esse episódio e a atualidade. Numa azáfama desenfreada a despejar água por todo o lado para reduzir a fúria das chamas, toda a família chegou a temer que fosse consumida pelo fogo sem termos sequer a possibilidade de ir buscar roupa para o dia seguinte. Naquela luta com desfecho incerto, minha mãe e o meu pai eram apenas mais duas pessoas naquela correria sem precedentes a ir buscar baldes de água ao tanque, aos lavadouros ou onde a houvesse para a despejarem na frente das chamas. Havia ali uma conjugação de esforços entre todos os vizinhos que agiam em uníssono, sem necessidade de uma voz de comando. Os seus esforços conduziam apenas faziam diminuir a fúria das chamas que continuavam a avançar.

À medida que as labaredas avançavam e o cansaço se apoderava de todos os intervenientes, os meus pais entregavam em pranto a defesa da casa a todos os anjos e santos da corte celeste e eu acompanhava-os nesse pedido, mas, no meu caso concreto, tinha um motivo íntimo e afetivo para considerar aquele momento ainda mais doloroso: tinha no bolso das calças que despira nessa manhã a primeira carta de amor da mulher que, passados cinco anos, viria a ser minha companheira ao longo dos últimos vinte e cinco. Perdê-la era simplesmente brutal pelo que representava em termos simbólicos, pois nada me garantia que tivesse direito a outra missiva igual ou parecida que viesse colmatar aquela perda. O meu alívio foi enorme por mim e por toda a família quando, passada a tormenta, verificámos que as chamas apenas tinham consumido a lenha que havia de nos aquecer no inverno seguinte, amontoada a uns cinquenta metros da habitação. Fui recuperar a carta, colá-la ao coração e agradecer a todos os que tinham acorrido para nos ajudar. Fazia-o sem registar a quem agradecera e a quem tinha ainda de o fazer, o que levou a que houvesse quem me advertisse que era a terceira vez que lhe manifestava a minha gratidão e sempre com o mesmo entusiasmo. Que podia fazer quem vira como inevitável a desgraça a avançar sobre nós e o que nos fazia felizes? Talvez os meus vizinhos reparassem mais na modéstia da nossa casa e minimizassem os possíveis danos, mas era ali que se concentrava toda a nossa história e o resultado de muito suor até chegar ao conforto que estava a crescer a cada ano que passava e as obras daquele verão tinham acrescentavam o forro, a casa de banho e mais um quarto individual improvisado com contraplacado na penúria de espaço, porque na casa dos pobres qualquer mudança representa sempre uma melhoria na qualidade de vida de quem a ocupa numa tensão desafiadora entre o desejável e o possível.

Havia uma pessoa que se destacava naquela turba munida de baldes para despejar água, enxadas e ramos verdes para atacar o inimigo onde conseguissem chegar: Raul.

Raul tivera a lembrança e a destreza de ligar o motor de rega e despejar água em abundância até onde a manga o permitia para defender a casa dele e a nossa e continuou a fazê-lo no rescaldo, até se apagar a última centelha.

Um valente! Quem se arrisca assim para proteger o que é dele e, neste caso, o que é meu só poderia merecer o meu respeito e admiração para sempre e a minha complacência quanto a alguma falha que pudesse vir a cometer e que pudesse comprometê-lo na sua reputação. Por outras palavras: teria de haver razões muito fortes para eu deixar de ver nele um homem bom.

Porém as minhas boas intenções esboroaram-se alguns meses depois, quando percebi através de provas irrefutáveis que, naquele caso específico, tinha sido ele o incendiário. Fiquei por muito tempo revoltado e ao mesmo tempo compensado na vontade de vingança por saber que nessa ocasião esteve prestes a ser consumido juntamente com os seus haveres pelas chamas ateadas pelas suas próprias mãos. Nunca o assumiu abertamente nem lhe pedi, exigi ou esperei que o fizesse, mas eu sabia que ele sabia que eu sabia o lugar exato onde colocara a vela acesa para ter a possibilidade de se pôr a salvo e se associar aos lamentos de desespero dos vizinhos. Há erros que têm de ficar para sempre com o seu autor, mas foram tantos os casos em que suspeitei fundadamente que as desgraças que nos ameaçavam em cada final de agosto tinham a sua assinatura que bem posso extrapolar para todas as outras em que ele fingia lamentar-se, como se alguém andasse a fazer-lhe concorrência. Assisti a isso em vários momentos, antes e depois do referido como marca indelével na minha alma, mas, pior do que isso, aconteceu noutras tantas situações ele pura e simplesmente só dar sinal de vida quando a tormenta passava.

Olhando para trás, descubro a relação de causalidade entre aquele crime e as suas necessidades: a erva dos montes era a fonte de alimento do seu rebanho e a cinza que ficava depois do fogo passar ajudava à regeneração da natureza e à abundância passados alguns meses, tal como a cinza da história me ajudou a esquecer esses momentos de dor coletiva e a perdoar a quem a provocava e, provavelmente, ainda se ria da eficácia do seu irresponsável e abominável ato.

Podemos pôr as mãos no fogo ao afirmar que era só uma vez por ano e que em todo o resto do tempo Raul era um bom vizinho, bom pai de família e com marido. Faz sentido que demos a esse comportamento apenas a importância que merece nos questionemos: afinal, que pode representar um dia em cada trezentos e sessenta e cinco na vida de um homem que parecia tão amigo dos seus amigos, solidário com os mais necessitados e capaz de zelar pela segurança da vida e dos bens de toda a população? Na verdade, era aquele fatídico dia da festa do padroeiro da vila que, ano após ano, o levava a cometer aquela loucura e a deixar uma mancha hedionda na pacatez da sua vida, como se tivesse contas a acertar com São Bartolomeu.

O que representa um dia numa vida?
Pouco ou nada, o que alguém queira:
Mais um ponto numa reta comprida,
Salvo quando houve uma forte asneira.

Como as pessoas mudam tanto no espaço de quarenta e oito horas! Dois dias após o susto coletivo, falava da festa com o entusiasmo de quem aproveitara a tarde para se divertir, ver a procissão numa atitude altamente devota e manifestara a sua disponibilidade para ajudar a levar o andor, dando mostras de uma integração social a toda a prova. Fazia questão de buscar o momento certo para essa partilha porque tempo era o que mais lhe faltava e tinha de aproveitar cada oportunidade como se fosse única. Explicando: devido à sua principal atividade como pastor, Raul sempre foi um homem solitário e com pouco tempo para entrar em interação com os vizinhos. Aparecer no ajuntamento dominical em que se falava de tudo, de todos, de nada e de ninguém em concreto era a exceção, mas tão exceção que se ficava, no máximo, por três vezes em cada ano. No final de agosto era fatal como o destino. Falava, ouvia, discordava ou anuía com toda a tranquilidade, mas o tema que mais o entusiasmava era a qualidade e exuberância das festas por onde passara nesse mês. Era um regalo ouvi-lo pelo entusiasmo presente em cada palavra, em cada gesto, em cada proposta.

Era assim quando os compromissos familiares e com os seus animais lhe absorviam o tempo, mas onde ia essa fase! Quando o encontrei de fugida na primavera passada, estava diferente. Nesta fase da sua vida sentia o peso dos anos e da solidão, uma sensação nova que o levava a procurar a todo o custo entrar em contacto com alguém e falar de tudo e de nada, mas falar. Nunca se afastava muito da sua residência. Ora à sombra da capela ora sentado nas escadas da sua casa, acompanhava todos os movimentos dos vizinhos ávido de companhia, saudava-os com maior ou menor espalhafato conforme a distância a que lhe ficavam e desfiava memórias e lamentos do homem trabalhador que fora e que agora se via naquele estado de impotência para tudo. Prometi que no final do verão regressaria com disponibilidade e gosto em ouvi-lo pelo tempo que lhe apetecesse.

Na semana passada estive com ele e dediquei-lhe a tarde inteira sem olharmos para o relógio nem um nem o outro. Fazia-o por obrigação? Havemos de convir que, em grande parte, sim. Havia ali uma certa retribuição pelo que representou de ajuda na minha infância, com a ressalva referida antes. Antes de partir por razões profissionais, após o regresso do cumprimento do serviço militar obrigatório, era com ele que me encontrava quase diariamente, ao final da tarde, e era com os filhos dele que brincava enquanto criança em tudo irmanados, devido à proximidade das nossas casas e aos parcos recursos das nossas famílias. Durante o dia, ou por causa do trabalho ou devido ao desencontro de horários eram poucas as oportunidades em que nos cruzávamos e ainda menos aquelas em que íamos além de uma saudação em movimento apressado, ele a caminho do curral e nós a caminho da escola da vila. Bem mais frequentes eram os momentos de conversa com a esposa. Umas vezes nas escadas da casa dela, outras vezes nas da nossa, ouvíamo-nos mutuamente pois Rosa e a minha mãe aproveitavam a hora da sesta para pôr a conversa em dia enquanto iam manejando o fuso para fiar a lã ou as agulhas da meia para garantirem pés quentes para toda a família a cada inverno sempre rigoroso nas casas dos pobres, sem isolamento capaz de suster o calor produzido pela lareira sempre acesa.

Que saudades desse tempo! Quando se olha para trás, dá a impressão de que tudo estava como devia estar e cada pessoa aparece-nos num permanente abraço de conforto a quem passava por alguma vicissitude. Era a solidariedade a funcionar nas mais pequenas coisas: no trabalho e no descanso, na alegria e na tristeza, na folia e no luto, nos sorrisos e nas travessuras dos mais novos e mais atrevidos.

Tudo isso pertence hoje ao passado, menos uma parte importante das nossas vidas: as nossas casas continuam nos mesmos sítios, mas daquelas famílias numerosas que as ocupavam resta apenas aquele ancião que nunca colocou a hipótese de partir e agora muito menos. Para onde poderia ir um homem com a sua idade? Para um lar? Para a casa de algum dos filhos?

Chegaram a colocá-lo perante as duas possibilidades de forma muito cordata. Recusou-as sem deixar margem para quaisquer negociações. Enquanto conseguisse, queria viver sozinho para gozar a liberdade que lhe cerceariam se lhe impusessem regras, horários ou ementas pré-definidas.

- O meu problema são as pernas – queixava-se. – A cabeça ainda funciona, durmo a noite inteira sem problemas, sou eu que faço as minhas refeições e queres tu saber que ao almoço e ao jantar, faço refeições modestas como noutros tempos, bebo o meu copinho e ainda sinto uma vontade enorme de sexo, mas?...

Respondi à insinuação com um sorriso que ele interpretou como desmentido. Justificava-se. Estava a meter-se por um terreno movediço e sabia que eu estava ali para lhe dar troco.

- Quanto a sexo, foi chão que deu uvas, senhor Raul. Ora admita lá.

- Pudera! Os anos e a falta de uso…

Raul era um homem de diálogos cheios de segundos sentidos, ronceiro e patusco com quem dava gosto conversar. Era tão capaz de uma brejeirice como de tolerar qualquer picardia sem reparar à idade ou condição da pessoa que estava do outro lado, como era o meu caso: mais novo do que o seu filho mais velho, a viver do meu trabalho e sem qualquer sinal de riqueza por força da verdade que sempre me norteou, tinha tudo para ser menosprezado numa conversa que ele fazia questão que fosse entre iguais, sem que isso raiasse a falta de respeito que mereciam os seus cabelos brancos, as suas canadianas e a sua visão cada vez mais reduzida e turva.

Essa era uma das caraterísticas que mais me cativava nele e por isso sabia que qualquer intervenção minha seria tomada a sério, se fosse caso disso, ou como piada, se fosse caso disso, sem deixar qualquer areia no sapato da nossa amizade. Vale a pena destacar a expressão escolhida: «falta de uso».

É certo que mais uso ou mais falta dele tem pouco a ver com a prole que a pessoa deixa, mas, se considerarmos que continuam vivos dez dos doze filhos que criou, é fácil admitir que estamos perante alguém que dava uso ao seu «equipamento reprodutivo».

- Cada coisa no seu tempo. Acreditei durante muito tempo na eterna juventude, mas cada ano que passa mostra-me que isso é uma ilusão. Custou-me a aceitar essa dura realidade, mas hoje estou mais do que conformado, Romeu.

Acreditamos na última parte da sua reflexão mais por darmos crédito às suas palavras do que por conhecermos em profundidade os meandros da sua vida íntima. O mais que sabemos é que enviuvara ia para três anos, numa altura em que tinha acabado de celebrar as bodas de ouro do seu fecundo casamento com Rosa de Fátima. Apesar dos seus setenta anos nesse momento, ainda pensou em tentar a sua sorte arrastando a asa a Rosalina, mas a diferença de idades foi o grande obstáculo.

Se alguém casa e promete ajuda
Ao vizinho que lhe disputa a cama
Será quase certo que pouco muda
E vai perder-se ele ou a sua dama.

Ficou ofendido quando ela lhe respondeu que era velho demais para ela, mas que havia de fazer? Uma diferença de idade de doze anos poderia ser tolerada se ele estivesse na casa dos cinquenta, mas assim… Mais de setenta anos e querer uma mulher abaixo dos sessenta, isso seria ir contra toda a lógica e sabedoria acumulada na expressão: «burro velho, pouco verde». Com todo o respeito pelas duas partes: nem ele era burro nem ela erva verde nem em termos de idade, nem quanto à escola da vida. Tinha uma longa experiência acumulada desde os seus quinze anos, segundo constava nos anais das memórias dos mais velhos. Ele próprio, Raul da Graça, lembrava-se dessa fama de Rosalina e lamentara muito que alguém tivesse a coragem de difamar assim uma moça bonita, trabalhadora e prestável, mas levou muito tempo até assentar a poeira e ela encontrar alguém que a levasse ao altar. Rafael lidava bem com a situação, o que provocava alguns comentários jocosos sobre a possibilidade de estar a escolher alguém com rodagem feita para lhe facilitar o trabalho pois era conhecido pela alcunha de Preguiça e parecia assentar-lhe como uma luva.

Como um azar nunca vem só, a morte do marido em circunstâncias nunca explicadas e sem que aparecesse o corpo, expuseram-na à fama de ter sido ela a assassiná-lo e a desfazer-se do cadáver para voltar a ser uma mulher libertina e fácil, de cujo rótulo nunca conseguiu libertar-se desde a sua primeira paixão nunca encerrada convenientemente, mesmo após o casamento. Bem gostaria ela que a memória das pessoas fosse mais curta e essa nódoa estivesse definitivamente anulada, mas, o que parecia era que toda a gente conhecia o seu segredo e lho deitava agora na cara. Raul sempre achara que tinha direito a uma vida privada que só a ela deveria importar, desde que sobrasse qualquer lambisco para ele, na lógica de homem que se regia pelo princípio «deixai-as todas para mim», cada vez que era atirada lama à cara de alguma mulher casada.

- Sabes bem que fui das poucas pessoas que pusemos a cabeça no cepo em tua defesa sempre que alguém tentou beliscar-te quando eras adolescente e depois do desaparecimento do Rafael.

Era verdade. Raul atestara perante as autoridades que a tinha por uma pessoa honrada e com os melhores princípios morais e o seu testemunho tivera um peso enorme na decisão de arquivarem o processo por ele ser uma pessoa adulta e respeitabilíssima. Esta consideração tornava-se ainda mais relevante num homem que toda a vida foi pastor, profissão muitas vezes associada a abusos da propriedade alheia. Ele preferia tomar à renda mediante contrapartidas em género do que devassar, destruir ou prejudicar as culturas alheias, embora nem sempre resistisse à tentação. Tinha pernas de galgo e corria o termo todo em busca das melhores pastagens e podia bem evitar danos na propriedade alheia, se assim o quisesse, mas era mais fácil atirar as culpas para cima dos javalis ou dos corsos.

- Preciso lá de meter o rebanho no teu lameiro ou nos teus campos de trigo, com tanta abundância de erva por todo o lado?

Havia sobranceria naquela resposta e na referência à abundância de pastagens ao seu dispor, mas parecia só haver uma pessoa a acreditar no que ouvia, como se depreende das palavras juradas da esposa: «O meu homem é incapaz de prejudicar alguém seja da maneira que for. Guarda tanto respeito ao que é dos outros como ao que é nosso».

Pobre Rosa! Que tolerância e permissividade a poderão ter atingido durante uma vida inteira para proferir com toda a naturalidade uma mentira destas e continuar a ir à sagrada comunhão todas as vezes que houvesse missa na capela em frente à sua casa? Ou teremos de admitir que ao fazer uma afirmação tão assertiva, só pode ter morrido na inocência quanto aos gostos pirómanos de Raul? Seria pedir-nos demasiado quando o próprio o assumia quando atirava louros para cima dela por o ter ajudado de vários apuros! Fê-lo muitas vezes na nossa presença. Tantas que dava a impressão de nos ter assumido como anjo protetor, mesmo depois de o advertirmos que preferíamos ignorar o lado negro da sua vida.

- As pernas deixaram de me ajudar. Se pudesse, os montes andavam mais limpos. Qualquer dia, entra-nos o mato em casa – lamentava Raul.

Todos sabiam que ano após ano ateava fogo em local seguro para os seus intentos de sair dali a salvo e com a certeza que garantiria vegetação renovada nos anos seguintes. Agora era ele a confessar a sua impotência para continuar a sua cruzada e o certo é que os fogos só escassearam por aquelas paragens, mas multiplicaram-se noutras latitudes e continuavam a fustigar os montes que antes regalavam os olhos com a sua verdura luxuriante e garantiam uma fauna abundante e saudável para os amantes da atividade cinegética.

- Gosta de ver arder, senhor Raul?

- Ninguém gosta, salvo se for algum doente mental.

Como ele mudara! Ou estaria a confessar alguma patologia que o levava a ser reincidente? Seria apenas por egoísmo que o fazia?

- Alguma vez se sentiu tão encurralado que pensou que era daquela vez que o iam prender?

- Para ser sincero… Sempre fui um rato. Sabia bem onde me esconder quando tudo se precipitava e me impedia de chegar a casa e associar-me aos coros de lamentações pelo que estava a acontecer.

- Sabe que os ratos também se apanham. Pode ser difícil, mas há sempre formas de contornar as dificuldades.

- Eu sei e fico contente quando vejo ou ouço alguma referência à prisão de algum incendiário.

Descubro certo mimetismo inato
Em todo o indivíduo que mente
Ao vender com ridículo aparato
Aquilo que nem pensa nem sente.
       Cobarde! Também no crime tem de haver alguma ética. Como podia um homem com historial de piromania tão longo quanto a sua vida longa o permitiu estar a sentir pena de lhe faltarem forças para continuar a fazer o mesmo e a condenar quem muitas vezes nem lhe chegava aos calcanhares em número e gravidade dos danos? Pudesse ser ele a desempenhar esse papel e tudo lhe pareceria normal! 

Júlio Rocha (10/6/2025)

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