MIRADOURO DO GAIO
Se uma mão dá e outra tira,
E até fecha a porta aberta,
Há de sempre uma mentira
Esbarrar em coisa certa.
O
Miradouro do Gaio é um local tão solitário e esconso que se torna apetecível
para os excessos de ternura que marcam o início dos namoros em Cabeça do
Abutre. Com o rio a servir-lhes de testemunha, cada beijo trocado ali tem sabor
a mosto e à pureza cristalina das águas que lhes correm aos pés e levam para bem
longe todos os segredos que conspurquem esses momentos. Aquilo que foi criado
para o bem também pode ser usado para o mal e o desleixo do turismo selvagem
poluiu a sua pureza original, manchada com um crime hediondo há mais de trinta
anos. Disso sabe quem ali vive e pouco importa a quem ali deixa que a vista se
perca na imensidão do Sul por entre socalcos e verdura de vinhas e laranjais.
Apenas nessa direção, pois, nas restantes, a negrura das serras calcinadas
refreia a vontade de olhar.
Encontrar
por ali gente estranha que vem para conhecer em transe os encantos naturais das
terras de Baco é tão habitual que as pessoas se habituaram a tratá-la com
familiaridade cúmplice.
Naquele
maio florido, a romaria de curiosos intensificara-se mais do que o habitual.
Leonel muitas vezes servia de cicerone a quem o abordava pois eram frequentes
os seus passeios demorados até ao local.
Daquela
vez, o sono fora mais forte do que ele e um casal, a aparentarem idade de
reforma, apareceu-lhe ali sem que se tivesse apercebido da sua chegada. Tinham
ares de quem cultiva uma sensibilidade apurada para os quadros majestosos que a
natureza nos oferece. Marido e mulher disparavam flashes a grandes planos e a
pormenores em cada jornada que faziam.
Naquele
dia, porém, ainda buscavam um motivo de interesse que os entusiasmasse e
alimentavam a esperança de vingar-se ao chegar ao Miradouro do Gaio. Anunciado
por placas apelativas só podia ter um encanto maior do que todos os outros concorrentes
e possíveis lugares de paragem. As expetativas justificavam-se.
Deslumbrados
com a policromia dos recortes e o afunilamento de horizontes, vingavam-se da
penúria anterior guardando para a posteridade o registo de um sem número de detalhes
quando descobrem uma tosca cruz em granito, que destoaria num cemitério,
colocada mesmo em frente do banco de madeira que a autarquia colocara ali para
repouso dos viajantes e deleite dos sentidos.
Sem
conseguir esconder o seu incómodo, a esposa protestava contra a falta de gosto
daquela disposição, bem como a referência a uma data tão precisa, quando foi
interrompido por uma voz desconhecida, mas que, pelo tom, indiciava a presença
de alguém prestável e em sintonia com eles na admiração daquele espaço.
-
É lindo, sim senhor. Para mim que venho aqui com frequência, o local é
majestoso, mas para quem chega de fora e o vê pela primeira vez, a novidade e a
imponência causam uma sensação de plenitude que nem os próprios sabem explicar
muito bem. Eu gosto de ficar ali sentado - apontava ele para um maciço bloco de
xisto negro cravado no muro e sombreado àquela hora pela tília florida - sem
outra preocupação para além de ouvir a voz do rio e do tempo.
-
Também experimentei esse banco e confesso que ficaria nele muito tempo se a
pressão para seguir devido a outros compromissos fosse mais singela. Estava cá
a magicar na asneira que fizeram ao colocar esta cruz sem Cristo, sem arte e
desenquadrada no espaço.
-
Incomoda-a? Por ser em granito? Está vossemecê muito enganada. Olhe que na zona
norte da aldeia o granito existe aos pontapés.
-
São motivos bem diferentes. Os cruzeiros têm associado a si um lado tenebroso:
falam de morte, um tema nada simpático para quem anda de viagem.
-
Infelizmente assim é. Morreu aí uma moça às mãos do antigo namorado.
-
A sério?! Bastaria isso para me causar calafrios, porém, há em todo esse
conjunto arquitetónico tanta falta de gosto que me assusta. Por estar associado
a uma história triste, ou colocavam um cruzeiro em condições ou evitavam por um
mamarracho desses.
-
E que história! A Josefa foi assassinada há um ror de anos, mas a família ainda
hoje vive inconformada e guarda-lhe o luto possível. Bem vê: quando se trata de
sentimentos…
-
Respeito as lágrimas de toda a gente, mas só ficava a ganhar se optasse por
retirar a cruz e plantar uma árvore, por exemplo. A vantagem salta à vista:
Transmitidos pelas folhas verdes,
Ou pelo doce sorriso duma criança
-
Era uma hipótese desde que os pais o quisessem. Se foram eles que colocaram
esse padrão de ignomínia para a posteridade com o intuito de lembrar o
homicídio da filha, teriam de ser eles a decidir a sua retirada.
O
viajante ajeitou o chapéu e os óculos de sol sem os retirar por completo e
afastou-se alguns metros centrando a atenção nos caminhos tomados pelas silvas
que em tempos pretéritos conduziam ao local.
-
Que sorte teve o autor do crime?
-
O assassino foi preso e, a partir de certa altura, deixou de se falar dele. Foi
nessa altura que os pais da Josefa puseram aí isso. Deve ter-lhes parecido que
as pessoas se estavam a esquecer demasiado depressa dos tormentos por que eles
passaram. Entende agora as duas datas que ali estão gravadas? 11 de agosto foi
o dia do crime e 5 de agosto o dia em que se colocou essa lápide e se levantou
a cruz, embora com uma diferença de doze anos.
-
Sim, foi preso e depois?
-
Há quem jure que morreu tísico a meio da pena, mas também há quem garanta que
estará vivo, a viver bem perto do local do crime após uma mudança de nome e de
visual. Certo, certo é que nunca mais apareceu por estas paragens e faço votos
para que tal nunca aconteça, sob pena de acontecer uma desgraça para compensar
outra.
-
Admite que pudesse acontecer justiça pelas próprias mãos se para aqui voltasse?
-
Em trinta anos, muita água passou por baixo da ponte e os ânimos hoje estão
mais serenos do que nunca. Se fosse após a confissão dos factos, com os nervos
a ferver e o coração a sobrepor-se à razão, o Joaquim tinha um fim triste.
Mais: as feridas abertas nessa ocasião, no que toca a algumas pessoas, ainda
hoje estão por cicatrizar. Refiro-me a todos aqueles que juraram falso e
ficaram desautorizados pela confissão de culpa daquele malvado. Lembre-se que
metade da aldeia esteve inscrita no rol das testemunhas que haviam de jurar a
sua inocência no mesmo dia e local em que ele confessou ter tomado essa atitude
num acesso de ciúmes.
-
Assim sem mais? Sentiu ciúmes e matou como beberia um copo de água se sentisse
sede?
-
Nem quero que me recorde. Os ciúmes dava-lhos eu, se me voltava a aparecer à
frente.
-
Imagino.
- Há tantos anos que se deram esses factos e ainda hoje odeio um homem desses.
Quer esteja vivo quer arda nas profundezas do inferno, ninguém pode perdoar a
um bandido desses. Foi tamanho o desgosto que senti que nunca mais quis casar e
continuo a vir por aqui como se o namoro continuasse.
- Uma história trágica, deveras.
- Desvendá-la foi um bico-de-obra.
-
Custou a chegar ao criminoso? É normal. Quem admitiu que tem de ser estúpido?
-
Os investigadores da judiciária andaram por aí um ror de tempo e temeu-se que o
caso ficasse sem uma solução. O Joaquim negava, todos negavam, ninguém vira nem
havia quaisquer indícios…
-
Sem indícios…
-
Os homens viram-se aflitos para desvendar esse mistério, mas bem sei as razões:
a Josefa era uma rapariga anónima e, por isso, pegaram-lhe sem grande
entusiasmo. A pressão da aldeia é que os obrigou a mudar de atitude.
-
Pode ser a versão de um interveniente que, ainda por cima, estava ferido com o
caso.
-
Há contornos que escapam. Sempre são mais de trinta anos. O que me lembro bem é
que toda a gente garantia que tinha havido um crime. Essa era a única certeza.
Prová-lo estava a dar água pela barba. A culpa esteve à beira de morrer
solteira. Os dados apurados revelavam-se tão inconclusivos que ninguém se
atrevia a pôr a boca em alguém com medo que as paredes tivessem ouvidos e logo
se seguissem represálias. Porém, havia de chegar o dia em que aquele nevoeiro
se levantasse e expusesse toda a verdade dos factos. Levou meses de avanços e
recuos como se o criminoso tivesse sido tão profissional no seu ato que outros
profissionais se revelassem impotentes para chegar até ele.
-
Sabe o que me ensina a experiência: mais tarde ou mais cedo os casos que
começam por ser difíceis acabam por se tornar fáceis em virtude de um pormenor
que dá sentido a uma série deles. Se os investigadores chegam a um dado, os
outros vêm por acréscimo.
O
homem estava afastado da conversa. Acabou por se ir sentar no banco deixado
livre por Leonel com ares de cansaço e enfado. A distância em relação à esposa
e ao desconhecido excluía-o completamente da conversa. Convinha-lhe. A alguma
pergunta inoportuna podia sair-lhe uma resposta comprometedora e fora com fito
bem diferente que se pusera a caminho. A esposa ainda fez menção de o chamar,
mas, ao pedido para que o deixasse descansar um pouco, voltou-lhe as costas e
conversou ainda com mais gosto com aquele guia pontual. Longe dela imaginar
sequer que pudesse ser estabelecida qualquer ligação entre o marido e aquele
caso e, por isso, estava à vontade para concordar com aquele estranho com
monossílabos guturais sempre cortados pela pressa do outro em apresentar tudo o
que sabia sobre o caso, o local, a aldeia, os destinos mais próximos, o que podiam
encontrar se estivessem atentos… num entusiasmo que afligia. Sobre o fim da
conversa, os bocejos traíram-lhe o esforço que estava a fazer para continuar a
escutá-lo. Fez menção de abreviar a partida porque:
Que bate à nossa porta ou à alheia
-
Galhito, vamos? - convidou ela o marido. - Por este senhor, ficaríamos aqui a tarde
inteira a conversar.
-
Permita-me só que apresente à sua esposa um pormenor da investigação que revela
bem a astúcia do chefe da equipa que tratou deste caso. Pois, como referi, a
morte da moça aconteceu em agosto e em novembro ainda ninguém tinha a mais
pequena suspeita sobre quem tivesse sido o autor. Ora, como estávamos no mês de
novembro, aqui, em Cabeça do Abutre, existe o hábito de oferecer flores aos
mortos, tanto depostas no cemitério como no local onde se deu o falecimento.
Pois bem, no Miradouro do Gaio acumulavam-se flores oferecidas por todos os
vizinhos como se quisessem fazer da Josefa uma mártir. Toni, o agente da
Judiciária responsável pela investigação do caso, jurou que através da análise
das impressões digitais daqueles ramos e de tudo o que a sua longa experiência
lhe ensinara havia de entrar nos casulos da alma do autor para deles retirar a
solução tão aguardada. Veja bem: era muita coragem da sua parte abrir o jogo e
prometer vitória, sobre uma onda que defendia a hipótese de ter vindo alguém de
fora manchar uma história local limpa de sangue.
- O inspetor arriscou demasiado, no meu entender. As flores são tocadas por tanta
gente...
-
Concordo consigo, mas a ponta do fio apareceu desta forma: homens, mulheres e
crianças, todos tinham deixado naquele amontoado de flores o registo da sua
dor. Todos menos um: Joaquim. Eureka, reagiu o entendido. Se todos reagem de
uma forma e um destoa, só o podia fazer por motivos fortes. Confrontado com
esse facto, o suspeito reagiu negando qualquer ligação ao assassinato e
apresentando um rosário de argumentos que lhe pareceram capazes de fazer com
que as atenções deixassem de estar concentradas sobre ele. O agente da
judiciária, um madurão, parco em palavras com aqueles que avaliava foi-lhe
replicando que até lhe aceitaria os argumentos noutras circunstâncias, mas
naquele quadro era impossível por ter sido o único morador de Cabeça do Abutre
a recusar flores à infeliz. O Joaquim ficou tão atarantado que lhe parecia
estar perante uma brincadeira de mau gosto, o que lhe dificultava enunciar
coisa com coisa. Sim, era verdade que até a mãe, as irmãs, as tias e os primos
dele, todos marcaram presença no Miradouro do Gaio ao longo do mês, alguns semanalmente.
-
A conclusão parece forçada.
-
Escute agora o desfecho. Apertado saiu-se com um argumento que julgava a seu
favor e que deitou tudo a perder. Voltou-se para o agente e lembrou-lhe que o
criminoso volta sempre ao local do crime. Que chão mais movediço! Foi-lhe logo
insinuado que se conhecia o princípio, o que estava a tentar fazer era
contorná-lo. Pararia por perto. Negava, negava, afirmava que ele e a Josefa
eram amigos, que tinham namorado até ao Natal do ano anterior. Ao pedido para
explicar por que se afastou do pulsar da comunidade sendo tão amigo da vítima,
a letra opunha-se à careta. Aquelas contradições haviam de esconder outras e
outras. Todas as atenções estavam agora concentradas sobre ele que teimava em
clamar a sua inocência.
-
É aí que surge a necessidade de levar à barra do tribunal meio mundo a
testemunhar que ele era boa pessoa.
- Vejo que entendeu tudo o que tinha para lhe contar. Habituados a encontrar nele
um homem sério, incapaz de se meter em zaragatas, tão frequentes entre os
rapazes do seu tempo, todos os vizinhos se disponibilizaram para ir atestar o
seu bom comportamento moral e cívico quando foi constituído arguido. Até ao dia
do julgamento, e nesse dia até ao momento em que ele falou, todos poriam as
mãos no lume por ele, mas, confrontados com os dados do processo, todos saíram
maldizendo a hora em que aceitaram passar pelo vexame de estarem a proteger um
criminoso da mais baixa espécie.
-
Galhito, vamos? - reforçou o convite.
-
Aqui também houve a família dos Galhitos. Desapareceu tudo. Uns morreram,
outros partiram para outras paragens. O Joaquim pertencia a essa gente.
A
mulher mostrou pressa em retirá-lo dali. O marido nunca lhe anunciara que a
levaria ao local do crime, mas bem podia estar perante isso, pois entre a
história contada pelo marido e a ouvida ali havia tais e tantas coincidências
que só podiam ser verdade ambas. A diferença estava no facto de uma ser a
versão do criminoso e a outra, de certa forma, a da vítima. E se o cicerone
descobrisse? Uma suspeita é uma meia certeza e tudo poderia acontecer.
O
marido entrou no carro sem se despedir de quem o tinha acolhido tão bem, sem
nunca retirar os óculos escuros e a boina galega. Um acenar de mãos foi tudo o
que pôde arranjar para pagar a deferência com que fora tratado.
-
Sabes o que eu acho, Joaquim? A história repete-se.
Parabéns 👏👏👏👏.
ResponderEliminarMuito interessante.
Continuação de umas boas escritas