TORNAM-SE CUCOS

ATO I

Idália e Luísa conversam em tom impercetível, mas nitidamente aborrecidas com algo que está a acontecer na escola e que as perturba. A aproximação do delegado sindical que só reconhecem depois, obriga-as a calarem-se por momentos.

DELEGADO SINDICAL - (provocador) Porquê essa revolta toda? Até parece que aconteceu alguma catástrofe na escola ou estão a fazer uma tempestade num copo de água?

IDÁLIA - Problema na escola. E o pior é que se prolonga no tempo.

DELEGADO SINDICAL - Contem-me tudo.

LUÍSA - Tem a ver com o nosso chefe.

DELEGADO SINDICAL - Geral ou do pessoal?

IDÁLIA - Os dois. Tal um, tal outro. Mas agora estávamos a comentar a forma como nos avaliou o chefe do pessoal.

DELEGADO SINDICAL - (espantado) Avaliou-as com uma classificação negativa? Pode lá ser?! Umas funcionárias tão zelosas merecem ser avaliadas com bom ou muito bom, no mínimo.

LUÍSA - Quem o viu e quem o vê!! (mostrando o impresso com a classificação de BOM). Uma vergonha, uma vergonha é que isto é.

DELEGADO SINDICAL - Calma. Um bom é sempre um bom.

IDÁLIA - O problema é que uma avaliação destas todos os anos impede-nos de progredir na carreira e isso tem implicações financeiras, como o senhor sabe muito melhor do que nós.

LUÍSA - O dinheiro faz falta a todos. Os nossos colegas têm uma família para sustentar, mas nós também. É todos os anos isto. Mudam os chefes, mas dá a impressão que leem todos pela mesma cartilha. Cheguei a convencer-me que este ia marcar a diferença, mas é igual aos outros… (depois de refletir um pouco) Até acho que é o pior que alguma vez tivemos.

IDÁLIA - Mudou muito depois da escolha para chefe.

DELEGADO SINDICAL - Como assim? Está a insinuar que antes era boa pessoa e bom profissional? Se o tivesse conhecido quando eu o conheci…

IDÁLIA - Só o conheci quando veio para aqui. Sei que trabalhava numa fábrica que fechou, mas nunca me preocupei com o passado dele nem de nenhum colega.

DELEGADO SINDICAL - Tenho acompanhado o percurso profissional dele e sempre me pareceu fraca escolha, mas a direção assim quis... Cheguei a admitir que eu é que estava a exagerar ao considerá-lo incompetente para a função.

LUÍSA - Está lá agora?! Como trabalhador, é fraco, mas sempre se movimentou muito bem na esfera do poder e chegou a conseguir algumas regalias para todos. Tinha outras experiências e isso notou-se logo quando foi o único a fazer greve, numa altura em que mais ninguém aderiu.

DELEGADO SINDICAL - Desconhecia esse dado, mas há de ter alguma explicação.

IDÁLIA - Andou pelos sindicatos e aprendeu muito com as más experiências. Nesse aspeto, honra lhe seja feita.

DELEGADO SINDICAL - Nunca o conheci a desempenhar qualquer função em qualquer sindicato, nem me consta que esteja sindicalizado, mas, se têm a certeza que foi sindicalizado e que até pode ter desempenhado alguma função dentro do sindicato, só tenho que admitir que seja mesmo assim. Porém, há uma coisa em que estou plenamente de acordo com o que acabo de ouvir: os sindicatos são uma escola onde se aprende muito em pouco tempo. É preciso ler muita legislação, mas, principalmente, contactamos com muitas experiências de vida. É na troca de experiências que todos ficamos a ganhar.

IDÁLIA - Lá está. A vida dele e a troca de experiências com outros que tiveram um percurso próximo, abriu-lhe os olhos. Nem sempre as dificuldades são aproveitadas para olhar a vida com outros olhos, mas acho que ele aprendeu muito com as partidas que a vida lhe pregou. Por alguma razão é dos poucos que deixaram a fábrica e arranjou uma alternativa em vez de ficar a chorar o leite derramado.

DELEGADO SINDICAL - Sem dúvida. O meu percurso tem alguns pontos de contacto com o dele. Antes de vir para a Educação trabalhava nas fronteiras. (olhando para Luísa que reagiu com espanto à informação) É verdade. Pouca gente sabe, mas eu comecei a trabalhar na fronteira. Quando deixou de haver fronteiras, propuseram-me esta opção e aceitei. Estão a ver a voltas que a vida dá? Aconteceu com o vosso chefe, aconteceu comigo e hoje acontece ainda com mais frequência. Mas voltemos ao início. Estávamos a falar no vosso chefe e que terá aprendido muito com os sindicatos. Pois bem, se aproveitou para aprender alguma coisa, só revela que é bicho fino. Conheço muitos casos em que as pessoas andam por lá anos a fio e ficam tão limitados como quando entraram. Em abono da verdade, também tenho que reconhecer que há sindicalistas que se habituam a essa vida e acabam por nunca fazer mais nada. São autênticos profissionais do sindicalismo.

IDÁLIA - Isso acontece mais com os professores do que com os funcionários. São situações diferentes. O nosso chefe nunca se aproveitou de tachos dos sindicatos, mas sempre gostou de andar bem informado, tanto quanto nos é dado perceber. Eu cheguei a elogiá-lo por isso. Conhece as leis e os despachos, as regras e as exceções... O problema é o que veio a seguir. O poder, porém, subiu-lhe à cabeça e agora nem parece o mesmo.

DELEGADO SINDICAL - Insisto que esperava isso dele. Quem só conhece os deveres funcionais por estarem regulamentados na lei, mas nunca sentiu a dureza do trabalho, é incapaz de perceber os sacrifícios dos outros. Tenho a certeza de que há muitos dias em que vocês chegam a casa cansadíssimas porque tiveram de fazer o vosso trabalho e o dele.

LUÍSA - Isso é bem verdade. Como se apercebe?

DELEGADO SINDICAL - É tudo muito simples: ando pela escola sempre atento ao que se passa. Esta é a minha segunda casa e teria alguma dificuldade em manter na minha casa pessoas que contribuem para criar uma má imagem. Falo do vosso chefe como falo do meu... (depois de uma breve pausa) dos meus.

IDÁLIA - Se fossem apenas os chefes...

DELEGADO SINDICAL - Bem observado. Vocês apercebem-se de professores que falham, mas eu também vejo e isso incomoda-me. A mesma coisa quanto aos funcionários. Vocês apercebem-se mais facilmente do que nós, mas o Brás nunca me enganou. Ser velho também tem as suas vantagens e eu sou mais velho do que ele. Pouco, mas o suficiente para me aperceber que ali há muita parra e pouca uva.

LUÍSA - (entredentes) Ali nem há parra nem há uvas. O mais que pode haver é vinho.

DELEGADO SINDICAL - Se fosse eu a mandar nas escolas do país, alterava o regime de avaliação tanto dos professores como dos funcionários.

IDÁLIA - (entusiasmada) Eliminava-a? Seria um gesto heroico porque significaria a morte de um monstro a que ninguém guardaria luto.

DELEGADO SINDICAL - Eliminar seria ir demasiado longe. (com ar solene) Optava por uma solução menos penosa: punha os professores a avaliar os funcionários e os funcionários a avaliar os professores.

LUÍSA – (fazendo movimentos de estranheza com a boca, particularmente com os lábios) Duvido que isso desse bom resultado. Como queria que avaliasse muitos colegas seus que nunca dão aulas neste bloco? Ou o inverso: como me podiam avaliar a maior parte dos seus colegas que dão aulas nas escolas do primeiro e do segundo ciclo se nem sequer sabem que eu existo?

DELEGADO SINDICAL - (atrapalhado) Bem, bem, bem... Nunca houve um modelo em que todos avaliassem todos. Seria sempre necessária uma comissão de avaliação e julgo que assim haveria mais condições para fazer um trabalho independente. Avaliar os pares é uma tarefa ingrata para quem avalia e para quem é avaliado, principalmente se tivermos em conta que há mudança de papéis cada vez que mudam os titulares dos cargos. Desta forma...

IDÁLIA - Mantinha-se a causa do mal-estar, porque avaliação sempre houve e eu nunca me preocupei com isso. O problema é que agora estamos dependentes da avaliação para progredir e só avançam os amigos dos chefes. Uma vergonha! (após uma breve pausa) O chefe de pessoal é uma vergonha. Cada dia que passa, fica mais arrogante, mais parcial, mais... olhe, mais doido.

DELEGADO SINDICAL – Acha que qualquer dia, temos de o ir visitar ao manicómio? Que exagero!

IDÁLIA - Espero que nunca se chegue a tanto. Sabe que eu tenho tão bom coração como isto: desejo a maior sorte do mundo até aos meus inimigos? Ele ainda está longe de entrar nessa categoria porque tenho memória e prefiro olhar para o presente com um pé no passado.

DELEGADO SINDICAL - E isso leva-a a...

IDÁLIA - Lembro-me perfeitamente, como se fosse hoje, do que aconteceu há mais de vinte e cinco anos. Quando veio para aqui, eu tinha anos de casa e, naturalmente, mais experiência, mais tempo de serviço do que ele e recebia um pouco mais. Muitas vezes me perguntou o que havia de fazer e como havia de fazer.

DELEGADO SINDICAL – Isso é louvável. Quando uma pessoa tem a humildade de reconhecer que precisa de aprender com as pessoas mais velhas e mais experientes, merece respeito.

IDÁLIA – O que fiz com ele, fiz com outros que foram entrando ao longo dos anos e continuaria a fazer se os novos me pedissem opinião.

DELEGADO SINDICAL – E pedem?

IDÁLIA – Há de tudo. Há quem peça e há quem chegue com tal arrogância que pensa que vai mudar o mundo. Eu fico naquilo que me parece.

DELEGADO SINDICAL – Parece-lhe mal, pois claro?

IDÁLIA – Para ser sincera, nem sei bem o que responder. A humildade é uma virtude. Sempre foi e há de continuar a ser, mas, quando vejo que há quem se aproveite da humildade alheia, apetece-me aplaudir quem mostra as garras logo à chegada.

DELEGADO SINDICAL – Está a pensar em alguém, certamente, mas nunca me apercebi desses reformadores.

LUÍSA – (irónica) Anda distraído. Se olhar bem, quem vê a representar os funcionários nos órgãos de gestão da escola.

DELEGADO SINDICAL – Sim e daí?

LUÍSA – Atiram connosco para a valeta.

DELEGADO SINDICAL – (admirado) Para a valeta?!

LUÍSA – É uma metáfora. Ocupam os lugares de comando e desempenham as tarefas mais fáceis. Nós ficamos com os trabalhos mais pesados, mais difíceis e cada vez mais exigentes. Quer um exemplo?

DELEGADO SINDICAL – Venha daí.

LUÍSA – Quem está no bar? Os novos. Quem está na papelaria? Os novos. Quem está na biblioteca? Os novos…

DELEGADO SINDICAL – Têm mais habilitações.

IDÁLIA – Isso agora!...

LUÍSA – O que acrescenta um curso universitário à capacidade para fazer limpeza, para manter a ordem nos blocos, para abrir um livro de ponto, para…

DELEGADO SINDICAL – Realmente.

LUÍSA – Pouca gente, ou mesmo ninguém sabe que há pessoal que prescindiu das noites passadas em família para tirar cursos superiores. Valorizaram-se e quê? Nada. Deveriam ser reposicionados na carreira e nada.

DELEGADO SINDICAL – Tenho conhecimento de situações dessas noutras instituições, mas na escola…

LUÍSA – Nas escolas!!! Nesta e em muitas mais. Uma vergonha. Incentivam as pessoas a valorizarem-se e depois esquecem-nas. Uma vergonha.

IDÁLIA – Ainda tentaram que me inscrevesse num curso noturno e estive quase a aceitar. Ainda bem que desisti. Que ganhava? Nada.

DELEGADO SINDICAL – Acontece o mesmo com os professores. Houve um tempo em que davam uma bonificação de quatro anos a quem tirasse mestrado na área que lecionava. A partir do momento em que houve o Tratado de Bolonha…

LUÍSA – Tratado quê?

DELEGADO SINDICAL – Tratado de Bolonha. Tem a ver com o reconhecimento dos graus académico em toda a União Europeia. Em termos práticos significa que todos os estudantes universitários que se prezem saem da universidades com o mestrado.

IDÁLIA – Eu acho bem que exijam essa formação tão avançada, mas depois devia haver alguma saída profissional. A minha filha também tirou mestrado e, coitadinha, veja o que lhe aconteceu. Está a fazer o mesmo trabalho que faço eu que nunca entrei numa universidade.

DELEGADO SINDICAL – Nem sequer quando ela estudava?

IDÁLIA – Nem nessa altura. (depois de uma breve pausa, segurando o queixo) Desculpe. Estou a mentir sem ganhar nada com isso. Realmente entrei eu e o meu marido quando ela defendeu a tese. Foi a única vez, mas foi uma vez.

DELEGADO SINDICAL – Eu percebi a expressão que usou. Nunca entrar numa universidade significa apenas que toda a sua formação aconteceu sem chegar a esse nível. Mas fique tranquila que o seu trabalho tem a mesma qualidade do que é feito pela nova geração.

IDÁLIA – Sei que faz essa apreciação honestamente, mas posso garantir-lhe uma coisa: pode haver quem cumpra as suas obrigações como eu, mas ainda está para nascer quem as cumpra melhor. Sabe porquê? Trato a escola como a minha segunda casa e muitos outros olham para tudo isto como se lhe fosse estranho e tivessem de o suportar apenas por obrigação ou necessidade.

DELEGADO SINDICAL – Muitos?!...

IDÁLIA – Muitos, muitos mesmo. O exemplo vem de cima. Sabe como foram escolhidos os últimos chefes de pessoal?

DELEGADO SINDICAL – Por eleição, suponho.

LUÍSA – Deveria ser assim. Podermos escolher a pessoa que achássemos mais competente, mais isenta, melhor companheiro ou companheira seria funcionar a democracia. Preferem seguir por outros caminhos: mandam-nos escolher entre os que desejam que ganhem mais, independentemente de serem novos ou velhos, bons ou maus profissionais.

DELEGADO SINDICAL – Novos?!

IDÁLIA – Nunca tive um chefe da minha idade ou mais velho. Sempre foram mais novos e nem sempre grande coisa. Sabe que na nossa categoria, como em todas, há pessoas que são más por natureza. (com desdém) Nasceram assim, que se há de fazer?

DELEGADO SINDICAL – Tem mais anos de casa do que eu e desconheço a quem se refere, salvo se se refere a quase todos.

LUÍSA  - A Idália tem razão. (depois de pensar um pouco e franzir os lábios, volta-se para ela e continua) Achas que o Matias era mais novo do que nós?

IDÁLIA – Da mesma idade. Levava-me menos de três meses.

LUÍSA – Ah!... Sim. Tu levas-me meio ano, o que significa que ele era mais velho do que eu. Pouco, mas era mais velho.

DELEGADO SINDICAL – Nesse caso, era da mesma idade. Que representam três meses a mais ou a menos entre pessoas adultas. Quando se trata de bebés, sim. Na nossa idade, nem um ano representa nada de especial.

IDÁLIA - É verdade que nunca me baixaram ao vencimento, enquanto ele, segundo consta, passou a receber pouco mais de metade daquilo que recebia enquanto estava no setor privado.

DELEGADO SINDICAL - Recebia o dobro e veio para aqui ganhar metade?! Essa história deve estar mal contada.

IDÁLIA - Acredite. O Estado é mau patrão e muito ingrato, mas que podia fazer? A empresa fechou e aproveitou o subsídio de desemprego enquanto pôde. Quando acabou, só tinha uma alternativa: ou aceitava esta oportunidade ou ficava desempregado como muitos outros.

DELEGADO SINDICAL - Imagino que deve ter sido uma decisão muito difícil. Quem está habituado a ganhar bem, passar a ganhar mal...

IDÁLIA - Concordo consigo, mas a pior coisa que pode acontecer a quem tem uma família para sustentar é ver-se sem possibilidade de colocar pão na mesa. Eu sei do que estou a falar. Antes de me surgir esta oportunidade também tinha que fazer muita ginástica para vivermos quatro pessoas só com o vencimento do meu marido. (emocionada) Honra lhe seja feita, que nunca desistiu de nos garantir o necessário trabalhando noite e dia, mas sentiu um alívio enorme quando me viu contribuir com uma ajuda para o orçamento familiar.

DELEGADO SINDICAL - Estamos a falar de duas coisas que só têm em comum o facto de se encontrarem no mesmo local e a fazerem o mesmo trabalho.

IDÁLIA - Supostamente, sim; na realidade, a escola acolheu-nos muito bem quando chegámos e só tenho a agradecer aos meus superiores e colegas pela forma como me receberam. Alguns reformaram-se há muito tempo, mas continuam a merecer-me a mesma estima que mereciam enquanto estavam no ativo. Era outro tempo!

DELEGADO SINDICAL - Significa que hoje é diferente?

IDÁLIA - Nada a ver. Havia solidariedade e cada um sentia-se na obrigação de ajudar o colega se o visse sobrecarregado ou adoentado. Hoje?! Nem pensar. Cada um só pensa em si.

DELEGADO SINDICAL - porquê? De quem é a culpa.

IDÁLIA - Para o caso, é irrelevante. Que adianta queixarmo-nos do sistema se temos que nos integrar nele? Só assim é que conseguimos sobreviver.

DELEGADO SINDICAL - Quase parece que há um certo fatalismo que todos acusam, mas ninguém se atreve a enfrentá-lo. Enquanto tudo se mantiver como está, hoje queixa-se a D. Idália, amanhã há de queixar-se qualquer colega com a mesma acutilância e razão e depois, outro e outro e outro...

IDÁLIA - O curioso é que eu deixei de me queixar desde que percebi que as minhas lágrimas caíam em areia molhada?

DELEGADO SINDICAL - Areia molhada?! É sugestiva a metáfora. Lágrimas... areia molhada. Deixe-me pensar o que está escondido nessa expressão. Acho que se trata de uma sensação de impotência para enfrentar um inimigo sem rosto que vai aniquilando ora uns ora outros.

IDÁLIA - Inimigo com rosto? Se me coíbo de o citar é por respeito, porque tento ser uma pessoa de bem, de paz, incapaz de fazer mal a uma mosca, quanto mais a qualquer colega. Procuro agir de acordo com a minha consciência porque gosto de chegar à cama e dormir tranquilamente, sem remorsos nem pesadelos.

DELEGADO SINDICAL - Admiro pessoas com essa capacidade de perdoar o mal que lhe fazem, mas admiro ainda mais aquelas que no momento oportuno são capazes de dar um murro na mesa e alterar o rumo da história.

IDÁLIA - Alterar o rumo da história? Essa tem piada. Sou demasiado insignificante para que o rumo da história dependa de mim.

DELEGADO SINDICAL - O futuro de todos será construído com o seu contributo, com o meu e com o dos nossos amigos e inimigos, os meus conhecidos e os desconhecidos. Há uma solidariedade universal que a todos obriga a dar o seu contributo, por pequeno que seja para que o futuro faça esquecer todo o passado, ainda que este tenha sido excelente.

IDÁLIA - Como pode ser? Se foi excelente...

DELEGADO SINDICAL - O futuro é construído sempre sobre o passado e nunca está terminado. É um eterno devir rumo à perfeição.

IDÁLIA - A perfeição é impossível de atingir.

DELEGADO SINDICAL - Nada mais pacífico do que isso, mas a história entrará em regressão no dia em que desistir de buscar a perfeição.

IDÁLIA - O que acontece entre os funcionários da escola é o mesmo que acontece com os funcionários de qualquer serviço do estado. Desde que entrou em vigor a malfadada avaliação de desempenho passou a haver cucos em todos os setores onde a avaliação conta para a progressão na carreira. É o salve-se quem puder.

DELEGADO SINDICAL - Em maior ou menor grau, também há cucos na classe docente e quase sempre sem darem nas vistas. Há toda uma arte que tem resultados garantidos.

IDÁLIA -Também sentiu alguma vez isso na pele?

DELEGADO SINDICAL - Para ser franco... Para ser franco... Preferia...

IDÁLIA - Vejo que tem alguma dificuldade em falar abertamente sobre o tema. Essa dificuldade dispensa uma resposta. Pelos vistos acontece entre os funcionários, entre os professores, entre os médicos...

DELEGADO SINDICAL - São profissões que desconheço e prefiro olhá-las como se fossem exemplares. Mas a opinião que tenho sobre os médicos é a mesma que tenho sobre os engenheiros, os arquitetos, os políticos... As pessoas que têm maiores responsabilidades sociais.

IDÁLIA - Também cheguei a pensar o mesmo dessas e outras profissões, mas com a avalanche de notícias que estão a aparecer na comunicação social, nem os padres, nem os bispos, nem os frades, nem as freiras estão isentas de culpa.

DELEGADO SINDICAL - São casos isolados que repetidos várias vezes dão a impressão de serem vários, em vários lugares e envolvendo várias pessoas. Quando se vai ao fundo das questões, tudo espremido resume-se a nada ou quase nada.

IDÁLIA - Mesmo que isso fosse verdade, o que é muito improvável, é uma vergonha. Se quisermos ser intelectualmente honestos, toda a gente sabe que onde há fumo há fogo.

DELEGADO SINDICAL - Mas também toda a gente sabe que há quem se sinta bem a denegrir a imagem dos outros como se da desgraça alheia esperasse receber algum benefício. Que resultado tiro eu que o seu chefe lhe faça a vida negra? Nenhum. Está a perceber onde quero chegar? Como pessoa, preocupam-me os assuntos que mexem direta ou indiretamente comigo e se cada um fizesse o mesmo vivíamos mais em paz. Como delegado sindical, preocupam-me os problemas de todos os profissionais ligados ao ensino.

IDÁLIA - Um pouco mais de paz dava-nos muito jeito, mas, enquanto houver homens e mulheres, há de haver sempre intrigas, invejas, rancores... Isso nasce com as pessoas. Veja o que aconteceu no início do mundo: Adão atirou as culpas para Eva, irmãos guerrearam-se, Abel matou a Caim... ou foi o inverso?

DELEGADO SINDICAL - Pouco interessa para o caso. Eram irmãos e viviam de costas voltadas.

IDÁLIA - Viviam de costas voltadas? Nada disso! Odiavam-se. Eu consigo viver de costas voltadas para alguém ignorando-o, como se a pessoa tivesse morrido, partido para outro local ou como se nunca a visse. Quando odeio uma pessoa e a enfrento, é radicalmente diferente. É como se visse o diabo à minha frente porque dá a impressão que me nega o espaço e o direito de viver.

DELEGADO SINDICAL - (segurando o queixo, pensativo) Nunca tinha pensado nisso, mas, agora que a ouvi, tenho que reconhecer que tem a sua lógica. As pessoas a quem desprezamos vivem no seu mundo e deixam-nos em paz no nosso; as pessoas que nos odeiam declaradamente e a quem pagamos na mesma moeda podem e querem fazer-nos mal e nós queremos que lhe aconteçam todas as desgraças possíveis e imaginárias.

IDÁLIA - Nunca passei por uma situação tão extrema como essa, mas admito que haja momentos na vida em que chegamos a desejar a morte de alguém como único remédio possível para a resolução de uma situação muito dolorosa.

DELEGADO SINDICAL - Sempre ouvi que há pessoas que e dispõem a passar por cima das outras para atingirem os seus fins. É aquilo a que se chama «cortar a direito».

LUÍSA - (aproximando-se sorridente) Rica vida, sim senhora. Estão aqui na cavaqueira e eu a trabalhar como uma escrava. Estavam a falar em direito? Foi o que ouvi.

DELEGADO SINDICAL - Cortar a direito, que significa que saber onde sequer chegar e seguir levando tudo e todos à frente.

LUÍSA - Deixem-me adivinhar: estavam a falar do novo diretor?

IDÁLIA - Até podia ser, mas seria incorreto da nossa parte privá-lo do estado de graça que lhe confere o facto de ter sido eleito há três meses. Precisa de tempo para mostrar ao que veio.

LUÍSA - (com desprezo) Precisa lá agora de tempo?! Até dá a impressão que caiu aqui de paraquedas! Conhecemo-lo há muitos anos e sempre teve a mesma atitude: afastar toda a gente que lhe fizesse sombra do seu caminho. Que Deus me perdoe, mas faz-me lembrar os cucos.

DELEGADO SINDICAL - Há professores assim, mas contam-se pelos dedos das mãos em cada escola. O normal é haver respeito pelo espaço de cada um, até porque os lugares de direção são pouco apetecíveis porque implicam muito trabalho e poucas mordomias. Eu acho que recusaria, ainda que tentassem obrigar-me. Gosto do que faço e de me sentir igual a todos os meus colegas porque o meu espaço e o campo de trabalho são as salas de aulas e os alunos.

LUÍSA - Ainda me lembro do tempo em que os diretores das escolas eram escolhidos pelos professores. Para ser sincera, até me parecia melhor. Iam para aquele lugar com os votos dos colegas e, se merecessem continuar, eram reeleitos; se tivessem qualquer tique de autoritarismo, eram despachados nas eleições seguintes. Agora quem manda na escola é a câmara e os satélites da câmara. Resultado: a direção tenta agradar à autarquia, às forças de seguranças, aos bombeiros, às autoridades de saúde ainda que isso signifique passar por cima dos professores ou descuidar a qualidade do ensino.

DELEGADO SINDICAL - A isso chama-se culto das aparências ou camuflagem. É o faz de conta que... Faz de conta que avança e fica tudo na mesma; faz de conta que exige e fecha os olhos a tudo o que falha; faz de conta que muda facilita e só complica; faz de conta que é tudo muito democrático e temos uma ditadura à medida da escola.

IDÁLIA - Essas preocupações passam-nos ao lado. São específicas do corpo docente, mas acabam por nos atingir indiretamente. Quando temos uma gestão fraca, tem que se rodear de elementos que lhe aparem o jogo sem causar ondas.

LUÍSA - Eles conhecem-nos, mas, às vezes, dá a impressão que se esquecem que a escumalha sabe muito bem conduzir a água ao seu moinho. Ao seu e ao dos amigos.

DELEGADO SINDICAL - Todos temos amigos e inimigos. Se tratamos mal os amigos, estamos à espera de quê? A vida este jogo permanente de dar e receber.

LUÍSA - Cada um só pode dar sem reparos aquilo que tem. Que tenho eu a ver que o senhor dê um presunto a quem lhe deu um porco? Se o tem...

IDÁLIA - O problema é de onde veio o porco (sorri). (voltando-se expressamente para Luísa) Se te dão um porco roubado, ficas com culpas no cartório.

DELEGADO SINDICAL - Para onde nos leva a conversa!... Daqui a pouco estamos a falar sabe-se lá de quê.

LUÍSA - É pouco provável porque temos pouco tempo. De outra forma falaríamos de tudo e de todos. Se nos final nos perguntassem qual tinha sido o tema da conversa, seria quase impossível de identificar.

DELEGADO SINDICAL - Pudera! É frequente ouvir-se que as conversas são como as cerejas: os assuntos vêm presos uns aos outros, mesmo sem querermos. Quando queremos voltar ao ponto de partida, torna-se difícil.

IDÁLIA - O que acontece nas conversas acontece na vida. Basta pensar no que acontece com os políticos. Quando dão os primeiros passos até são honestos, generosos e com ideias muito claras e pessoais. A partir de certa altura, habituam-se a mentir, a fingir e a ser a voz do chefe e homens e mulheres honestos e trabalhadores passam a ser fantoches nas mãos de um fantoche maior que os empurrou para esse estado de letargia.

DELEGADO SINDICAL - Essa visão é muito catastrófica e quase deixa subentender que caminhamos de mal a pior.

IDÁLIA - (incomodada com aquela oposição a uma evidência) Subentender?! Afirmo-o com todas as letras. Todos conhecemos muitos casos que confirmam isso. Preciso de lhe citar exemplos? Cada um é cuco a seu modo: vai expulsando do seu caminho todos os que ameaçam as suas ambições.

DELEGADO SINDICAL - Que exagero! Dá a impressão que andamos constantemente a morder-nos uns aos outros.

LUÍSA - Fico admirada consigo. Um homem inteligente e a querer negar as evidências é algo estranho. Veja o que se passa a nível local e faça a transposição para o nível nacional. Cada lugar só pode ser ocupado por uma pessoa. Certo?

DELEGADO SINDICAL - Certo.

LUÍSA - Só há três formas de chegar aos lugares do topo: mérito, cunha e traição ou usurpação, como lhe queira chamar.

DELEGADO SINDICAL - Está a esquecer-se de uma via que também é muito usada.

LUÍSA - Desconheço. Se me elucidar...

DELEGADO SINDICAL - (risos) Ser eu a referir-me a ela na conversa com duas mulheres fica-me mal.

IDÁLIA - Deixe-me adivinhar. Está a referir-se à via urinária.

DELEGADO SINDICAL - Naturalmente.

LUÍSA - Que esse método funciona, há muito quem garanta que sim, mas apenas a nível local. A nível nacional, parece-me algo estranho.

DELEGADO SINDICAL - Quem vê um povo, vê o mundo todo. Umas vezes será a via urinária, outras, a culinária e outras sabe-se lá o que seja. Perante tantos escândalos que nos entram pelos olhos dentro através da comunicação social, atingi aquele estado em que se alguém me afirmar que viu um burro a voar, acredito, principalmente se houver, logo de seguida dois ou três desmentidos.

LUÍSA - (lamentando-se) A comunicação social... Para chegar à comunicação social passa por muita censura prévia. Se a comunicação social fosse minimamente isenta...

DELEGADO SINDICAL - ... estava condenada ao fracasso. Tem que ser favorável a quem lhe paga. E só pode pagar quem manda nas freguesias, nos municípios, no país.

IDÁLIA - Onde está o quarto poder? Se a comunicação social é porta voz do poder instituído, acabam por ser uma e a mesma coisa.

DELEGADO SINDICAL - Quem paga manda. Essa é a premissa de que é preciso partir sem rodeios. Quem pensar o contrário está enganado e quem quiser alterar a situação está condenado ao fracasso porque a classe reagiria como leão ferido. Pode parecer estranho, mas a comunicação social apenas se preocupa em escalpelizar as fraquezas da oposição.

LUÍSA - (com desprezo) Fraco serviço presta ao país.

DELEGADO SINDICAL - É assim na política e em tudo. Ninguém se atreve a hostilizar quem exerce o poder, pelo menos até se aproximar o fim do mandato. Nessa altura, podem aparecer algumas vozes críticas e, com alguma frequência, algum distanciamento de parte a parte.

IDÁLIA - Imbecis. Quem age assim é um imbecil que só contribui para desprestigiar uma profissão que devia ser isenta, objetiva e esclarecedora.

LUÍSA - Nunca te tinhas apercebido? Vê o que se passa quando há mudança de direção na escola. Quem estava com a equipa anterior apressa-se a demarcar-se, na tentativa saloia de cair nas boas graças dos que chegam. Apontar defeitos a quem parte é o mínimo que se pode esperar. Bons são os que chegam.

IDÁLIA - Chamo a essa gente lambe botas.

DELEGADO SINDICAL - Chame-lhe como quiser, mas o certo é que são esses que têm direito às mordomias que haja para distribuir. Ora pensem comigo: quem é escolhido para chefe do pessoal? Alguma vez perguntaram quem queriam? Põem-nos a escolher entre dois ou três nomes que eles apontam como sendo as pessoas mais indicadas. Tenho alguma dificuldade em perceber como toda a gente se cala perante essa arbitrariedade. É que, pensando bem, há nesse gesto uma apreciação negativa sobre todos os outros.

IDÁLIA - Segundo julgo saber, o que se passa a nível de pessoal auxiliar e administrativo, também acontece com os professores. Aos olhos da direção, há professores de primeira, de segunda e possivelmente de terceira ou quarta.

DELEGADO SINDICAL - Partilho totalmente essa opinião, mas fique a saber que penso o mesmo desde que apareceu este modelo de gestão. Pode crer que sempre registei no boletim de voto o nome do diretor.

LUÍSA - É um voto nulo.

DELEGADO SINDICAL - Quero lá saber! Manifesto a minha discordância da forma que posso. Se todos fizessem o mesmo...

IDÁLIA - (encolhendo os ombros) Que ganha com isso? Nada!

DELEGADO SINDICAL - Está enganada. Ganho muito porque fico em paz com a minha consciência. O pior que pode acontecer é vermos e calarmos. Acho que a constituição da república devia consagrar o direito à revolta quando nos discriminam.

LUÍSA - Onde vê discriminação?

DELEGADO SINDICAL - Que maior discriminação pode haver do que alguém considerar que somos incompetentes para o desempenho de qualquer tarefa sem uma avaliação prévia. Só porque acha que é assim? Uma coisa são os factos e outra as opiniões. Se me apresentarem factos que provem que sou incompetente para o desempenho de uma tarefa, só me resta aceitar. Se alguém parte do princípio que sou incompetente porque me recuso à bajulá-lo, tem que saber que terá sempre em mim alguém que condena essas arbitrariedades. Faço-o no que mexe comigo, mas faço-o também quando chegam ao meu conhecimento arbitrariedades noutros domínios.

IDÁLIA - Obrigado por isso. Mas deixe que lhe confidencie isto: deve ser por isso que entre os funcionários do agrupamento tem muitos colegas meus que o endeusam e outros tantos que o diabolizam.

DELEGADO SINDICAL - (depois de um breve momento de desconforto ou incredulidade perante a revelação, reage pausadamente) Todos gostamos de saber que alguém se identifica com as nossas maneiras de olhar o mundo, mas neste caso concreto sinto como prémio que isto que penso sobre as arbitrariedades cometidas para com funcionários exemplares provoque mal-estar em alguém.

LUÍSA - (admirada) Fica feliz com isso?

DELEGADO SINDICAL - Claro que sim. Significa que ainda há pessoas que nos tomam a sério.

IDÁLIA - Há pessoas que têm esse condão: cada vez que abrem a boca, as suas palavras provocam ondas. Veja-se o que se passa com o anterior presidente da república.

DELEGADO SINDICAL - A comparação com figuras desse gabarito é claramente exagerada, mas, de qualquer forma, o efeito provocado pelas minhas tomadas de posição em assuntos escaldantes é um prémio saboroso para mim, como referi. E mais: obriga-me a continuar a fazer o que tenho feito porque um dia pode vir a dar ainda mais frutos do que tem dado até ao momento.

LUÍSA - Conhece o ditado «quem porfia mata caça»? É preciso insistir, insistir muito e conseguir cativar outras pessoas a aderirem à nossa causa. Porque havemos de pensar que há uma fatalidade que nos rege ou uma mão invisível que nos obriga a estar calados quando devemos falar?

DELEGADO SINDICAL - Estar calados quando devíamos falar seria uma atitude cobarde e ninguém gosta de ser encarado dessa forma. Com maior ou menor coragem, de forma mais clara ou mais dissimulada, todos gostamos de dar a nossa opinião.

IDÁLIA - Concordo e até acho que todos o fazemos. A diferença está apenas nisto: há quem o faça às claras, abertamente, e há quem o faça apenas no ambiente reservado dos amigos mais próximos. Eu também o faço entre os familiares e amigos, mas dá-me um gozo especial pegar o touro pelos cornos e falar mesmo quando outros acham que é inoportuno.

LUÍSA - Inoportuno?! Inoportuno é alguém tentar usar-nos como escadote para subir na vida. Isso é que é inoportuno e, mesmo assim, acontece.

ATO II

As mesmas personagens do ato anterior mais D. Alice, que acaba de pedir a aposentação e ficou desconsolada com a informação do valor que passará a receber. A redução quase para metade face ao que está a receber agora deixa-a num misto de revolta e de satisfação.

ALICE – Vão dar-me pouco, mas tem que ser. Podia ficar até fazer os setenta anos, mas a diferença seria tão insignificante que prefiro ir embora quanto antes. O que me vão dar a mim, mais o que recebe o meu marido dá para vivermos sem problemas. Os filhos estão criados. Ganham para eles.

DELEGADO SINDICAL – Gostam sempre de uma ajuda dos pais.

ALICE – Isso é verdade, mas continuarei a ajudá-los como até agora. Graças a Deus, temos a casa paga, formámos os filhos ainda temos um pouco de saúde para tratar do quintal para termos a nossa horta e fazermos exercício físico.

DELEGADO SINDICAL – Gosto de a ouvir falar deste passo com essa determinação toda.

IDÁLIA – A D. Alice sempre teve esta atitude de espírito. É uma daquelas colegas que vai deixar saudades, ao contrário de muitos outros cuja saída representou um alívio para os que ficávamos.

ALICE – Cada pessoa é diferente das outras, mas houve uma preocupação que sempre tive na vida: elogiar as pessoas quando me parecia que mereciam ser elogiadas e calar-me quando me apetecia protestar por ver que estavam a pisar o risco. Houve quem visse nisso alguma cobardia, mas nunca dei ouvidos ao que os outros pensavam a meu respeito. Achava que o tempo havia de se encarregar de levar a pessoa a ver que estava errada.

IDÁLIA – Posso revelar a fórmula que tu usavas para ultrapassar essas situações?

ALICE – Deixa-me ser eu a fazê-lo. Tenho o professor Artur na conta de amigo e percebe logo tudo à primeira. Sabe que eu sou muito devota.

DELEGADO SINDICAL – Sabia. Recorda-se que confio tanto na sua oração que cheguei a pedir que rezasse por mim quando fui operado. Lembra-se?

ALICE – Onde vai isso! Acredito que o tenha pedido, mas posso garantir-lhe que se me pediu, rezei mesmo. Mas deixemos agora o seu caso particular. Estava eu a contar que ao longo da minha vida assisti a muitas coisas que me apreciam mal e achava que precisavam de ser resolvidas para bem de todos. O que fazia? Rezava pela pessoa em causa até perceber que a situação estava ultrapassada sem deixar grandes marcas na pessoa em concreto ou nos que convivíamos com ela.

IDÁLIA – Posso confirmar que era assim e ainda mais: chegou a pedir-me que me associasse às suas rezas e devoções.

ALICE – Houve situações em que associámos os nossos esforços convencidas que assim ficaria o trabalho mais facilitado.

DELEGADO SINDICAL – E?!...

ALICE – Ou com a ajuda das nossas orações ou porque tinha mesmo que ser assim, o certo é que a vida seguiu. Houve altos e baixos, mas ainda estamos cá todos para contar.

DELEGADO SINDICAL – A D. Alice é um tratado. Consegue colocar-se sempre do lado bom da vida.

ALICE – Tento. Que adiantava estar por aí a gemer por todo o lado como se tivesse o mundo às minhas costas?

DELEGADO SINDICAL – Tem razão. Há pessoas que passam a vida a lamentar-se de tudo e de todos. A D. Alice é uma alma boa e, pelo que acabo de ouvir, tão generosa que reza pelos amigos e por quem vê a pisar o risco. Desculpe a minha pergunta: E quando as suas orações falham?

ALICE – Nunca falham, ou melhor, cada vez que rezo por mim ou pelos outros, coloco-me numa posição humilde. É quase como se só estivesse a lembrar a Deus, à Virgem Maria ou a algum santo as minhas necessidades ou as dos outros. Isso é diferente de tentar impor.

DELEGADO SINDICAL - Explique-me a diferença.

ALICE – Gosto pouco de falar em temas religiosos porque a minha formação é básica. Só sei que sou muito religiosa desde que me conheço.

DELEGADO SINDICAL – Desculpe. Esses assuntos são pessoais e só temos que os respeitar. (após um silêncio conjunto) Para onde se encaminhou a nossa conversa. Estávamos a falar da sua aposentação e acabámos a falar das suas devoções.

LUÍSA – As conversas são sempre assim. Se seguissem um roteiro pré-estabelecido, seria uma chatice. Assim tudo é imprevisto. Sabemos como começamos e a partir daí damos largas à imaginação.

DELEGADO SINDICAL – Deixe-me fazer-lhe uma pergunta: houve algum desgosto, alguma tração dos colegas, da direção… de alguém?

ALICE – Nada, absolutamente nada de novo. Como sabe, sou uma mulher doente e isso tira-me tranquilidade para lidar comigo e com os outros. Canso-me facilmente e falta-me a paciência para lidar com os meninos e com os colegas. Prefiro sair assim do que acabar por ser empurrada por me verem andar aqui a arrastar-me.

IDÁLIA – Esse medo é irreal. Todos sabemos que ela continua a cumprir as tarefas que lhe estão distribuídas na perfeição. Imaginar que pode deixar de o fazer de um momento para o outro é um exagero.

ALICE – Pode ser, mas decidi e acabou-se. Fiz o pedido e aguardo. Preciso de descansar, aliviar a cabeça e ter mais tempo para os netos.

DELEGADO SINDICAL – Os netos têm os pais.

ALICE – É verdade, mas gostam muito dos miminhos dos avós.

IDÁLIA – Com os anos, isso passa.

ALICE – (com desdém) Quero lá saber! Vou aproveitar enquanto puder. Quando ganharem asas e quiserem estar longe de mim e dos pais, que o façam. Quero lá saber!

DELEGADO SINDICAL – (provocador) E vai continuar a rezar. Depois tem mais tempo…

ALICE – Isso é uma ilusão.

DELEGADO SINDICAL – É pura realidade.

ALICE – Insisto que é uma realidade e é mesmo. Se parar para pensar vai concordar comigo. Nunca lhe aconteceu chegar às férias e fazer um monte de projetos a contar que vai ter tempo para tratar de tudo. O que acontece? O tempo voa e quando damos por isso perguntamo-nos como é possível.

DELEGADO SINDICAL – Então vou partilhar com vocês uma pergunta que faço muitas vezes nessas alturas: como é que eu tenho tempo para trabalhar na escola? Fico com os dias tão ocupados e sem capacidade para atender a tudo que fico incomodado quando me apercebo disso. Percebem a questão?

IDÁLIA – Perfeitamente. Acontece-me o mesmo e acho que isso é comum a todos.

ALICE – Tem a ver com a capacidade de gerir o nosso tempo. Se temos horários a cumprir, resolvemos tudo com mais rapidez. Se temos todo o tempo do mundo…

LUÍSA – Começamos logo por dormir mais um bocadinho…

ALICE – É isso mesmo. Levantamo-nos mais tarde, andamos com mais calma, saímos a qualquer parte só porque sim e, quando damos por isso, está na hora de fazer o almoço e gastou-se a manhã sem dar por isso. À tarde acontece algo parecido e às horas que regressaria da escola olho para trás e concluo que pouco ou nada fiz de relevante.

DELEGADO SINDICAL – (sorrindo) Chego a duvidar como é possível ter tempo para dar aulas pois o tempo voa nas férias e fins-de-semana. Quando conto gastar uma hora na resolução de qualquer assunto, dou comigo a demorar uma manhã ou tarde inteira. Se eu contasse o que me aconteceu no sábado, iam ficar na dúvida se estava a falar a sério ou a ser irónico.

LUÍSA – É melhor deixar para outro dia. Hoje temos pouco tempo para limpar as salas que faltam. Há outros dias.

ALICE – Deixa lá isso. É mais minuto menos minuto. (voltando-se para DELEGADO SINDICAL) Conte tudo.

IDÁLIA – Faça um resumo.

DELEGADO SINDICAL – Então foi assim: precisei de ir à Caixa fazer uns pagamentos e encontrei-me com o Sr. Aleixo.

LUÍSA – E como estava? É um dos homens que deixou saudades quando se reformou.

DELEGADO SINDICAL – Por isso mesmo. Senti-me na obrigação de colocar a conversa em dia e sabem como são estas coisas: quando dei por mim, estava na hora do almoço.

IDÁLIA – Isso significa que desenferrujaram a língua. Fizeram bem. Vale a pena conversar com pessoas como ele e consigo.

LUÍSA – Deixemo-nos de louvaminhas. Amanhã é outro dia e temos mais tempo para cortar na casaca de alguém.

DELEGADO SINDICAL – Na minha, por exemplo.

ALICE – Quem sabe? As conversas acontecem com a mesma naturalidade com que respiramos.

DELEGADO SINDICAL – (provocador) E então entre mulheres!...

IDÁLIA – As mulheres têm a fama, mas os homens têm o proveito.


ATO III

As mesmas funcionárias, mais a filha de Idália, também ela assistente operacional na mesma escola.

JOANA – Venho chateadíssima. A direção deve pensar que sou pau para toda a vassoura. Comecei o ano a trabalhar na sala dos professores, passei para a papelaria, depois para a cozinha, para o bufete. Agora querem que assegure a biblioteca. Sei que sou polivalente, mas isto começa a parecer abuso.

IDÁLIA – Isso pode ter duas leituras: ou gostam muito do teu trabalho ou estás a dar má conta do recado nos lugares por onde passas.

JOANA – Inclino-me mais para a segunda hipótese. Mandam-me para os serviços sem me indicarem exatamente o que esperam de mim. Querem que invente?

IDÁLIA – Calma. Só fazes o que puderes. Se precisares da minha ajuda…

JOANA – Só faltava agora essa! Até aqui tenho sido eu a ajudá-la a si e de um momento para o outro preciso que alguém me ajude? Nem pensar!

LUÍSA – Se precisares, qual é a vergonha? Ninguém mais indicado do que a mãe. Tomara muita gente uma ajuda pronta assim!

JOANA – (dirigindo-se a Luísa e Alice) Acham isto normal? Vocês são mais velhas, acham normal o que está a acontecer?

ALICE – Só é estranho se tivermos em conta que ninguém meteu baixa, ou seja, continuamos ao serviço as mesmas pessoas que começámos o ano.

JOANA – Isso significa que há pessoas a cobiçar o trabalho que me atribuem?

LUÍSA – Eu acho mais provável o contrário.

JOANA – O contrário?!

LUÍSA – Acham que o trabalho que estão a fazer é pesado e apontam o teu nome para ir fazê-lo com o argumento que estás nova, cheia de saúde e com vontade de dar nas vistas.

JOANA – Dar nas vistas?! Tudo menos isso. Quero passar despercebida. É por essas e por outras que nunca tive qualquer avaliação superior a «BOM».

IDÁLIA – Pode ser que este ano queiram reparar os erros de anos anteriores. Lembras-te que o ano passado chegaste a pedir explicações por te avaliarem daquela forma quando achavas que tinhas feito mais e melhor do que qualquer um dos que foi avaliado com «MUITO BOM» ou «EXCELENTE».

JOANA – Onde vai isso. Fiquei chateada na altura e recusei assinar a folha da avaliação, mas o assunto morreu no dia em que a assinei. Nem sequer quero admitir como hipótese de trabalho que esteja a sofrer represálias por protestar contra a atitude discriminatória que saltava à vista e ninguém queria ou conseguia explicar. O chefe empurrava para a direção; a direção, para o chefe. Uma história mal contada.

ALICE – Assim mesmo. A tua história é igual à minha, à da tua mãe e à de muita gente que nunca teve qualquer promoção na carreira porque houve sempre quem nos fosse empurrando para a sombra.

IDÁLIA – (com uma ironia indisfarçável) Se nos empurrassem para a sombra, sempre tínhamos a vantagem de estar confortáveis. Acho que nos empurram para a lama, para o sol do estio… para o fogo… (depois de uma pausa breve) para o inferno. Esticam tanto a corda que esgotam a paciência de um santo, quanto mais a nossa.

ALICE – (colocando a mão no ombro de Joana) Eu e a tua mãe vamos ficar por aqui até à reforma, mas tu anda atenta aos concursos públicos e privados e se puderes mudar de vida, aproveita. Tens estudos e ninguém te dá medalhas por lhes aparares o jogo.

JOANA – Eu sei. Concorri com entusiasmo e fiquei felicíssima quando consegui o lugar, mas…

IDÁLIA – (aproximando-se dela, segreda-lhe ao ouvido) Olha que as paredes têm ouvidos. Fala baixo. Quanto mais falamos mais nos enterramos.

JOANA – Pode haver quem deseje enterrar-me viva, mas farei tudo para o evitar, ainda que seja preciso bater com a porta.

IDÁLIA – (abraçando a filha) Calma. Atrás de tempo, tempo vem. Tu vais superar esta provação. (dirigindo-se às colegas) Sinto-me culpada pelo que está a acontecer, mas tudo o que fiz foi por amor. Alguma vez eu pensei que a minha filha pudesse ser tratada desta forma? Incentivei-a a concorrer para aqui e agora aconselho-a a fugir disto tão rápido quanto possa.

LUÍSA – O passado deixava prever isto. A cada ano que passa, em vez de melhorar o ambiente, cada vez fica mais insuportável. Longe vai o tempo em que nos dávamos como se fossemos uma família.

ALICE – Éramos menos. Quando há muita gente…

IDÁLIA - É uma pouca-vergonha. Chego a pensar que estamos perante guerras políticas que vêm do exterior e têm aqui os seu reflexos. A ser assim, estamos sujeitos aos caprichos da alternância política e da vingança dos vencedores em relação aos vencidos.

JOANA – Que tenho que ver com isso? Ninguém me perguntou em que partido votei, mas também seria tempo perdido. Nem o meu marido precisa de saber, quanto mais os estranhos!

ALICE – Em vez de política, estamos perante politiquices ou, se quisermos, traições. Cada um olha só para o seu umbigo.

IDÁLIA – Se fosse isso, até aceitava. É legítimo que cada um pense em si e nos seus em primeiro lugar, mas é necessário saber conviver com os outros e respeitá-los. É isso que está a faltar. Ao faltar o respeito, que podemos esperar?

JOANA – Calma, mãe. Atrás de tempo, tempo vem. É melhor que me ataquem só a mim do que terem pretexto para atacarem as duas.

ALICE – É mais difícil baterem em todos do que só numa.

JOANA – Obrigado pela solidariedade, mas parece-me um excesso porque ninguém me está a ameaçar. Na verdade, até seria preferível porque é mais fácil defendermo-nos quando conhecemos os inimigos ou adversários do que quando nos aparecem sem rosto, sem reivindicações… sem motivos. Se alguém me mostrasse o que querem de mim como funcionária da escola, estaria a dar-me uma ajuda enorme. E sublinho que só respondo como funcionária da escola porque se vão para lá dessa baliza, então podem desde logo ficar quietos. Ouço rumores que nem considero como hipóteses de trabalho porque quero que todos saibam que estou aqui para ganhar dinheiro como retribuição pelo meu trabalho.

IDÁLIA – Assim é que é falar. Nunca me tinhas revelado que havia rumores sobre interesses subterrâneos, mas, já agora, fica a saber que nada me estranha. Há pessoas que onde lhes fecham as portas mandam os seus embaixadores.

ALICE – Estou parva da minha vida. Isto anda assim? Sabia que há muitas vias para chegar ao sucesso, mas que no meu ambiente de trabalho seja considerada, ainda que apenas como hipótese, a via urinária… (benzendo-se) Cruzes! É mau demais para ser verdade.

JOANA – Que culpa tenho por ter a idade que tenho? Tenho esta idade, tenho este corpo e sou feliz assim. Se alguém tem inveja ou acha que tem direitos sobre o meu corpo se quero progredir, pode aguardar de pé… (sorrindo maliciosa) Se estiver sentado, pode criar calos no rabo.

IDÁLIA – (encostada ao ouvido da filha) Houve alguma tentativa de abuso?

JOANA – (acena a cabeça em resposta negativa) Estou furibunda. Acho que é melhor ir para casa antes da hora para evitar males maiores.

LUÍSA – Acho que devias ir à direção expor o problema. Eles é que são os responsáveis últimos pela tua mudança permanente de trabalho. E se eles tiverem razões válidas para isso? Temos que admitir que as pessoas agem com boas intenções.

IDÁLIA – De boas intenções está o inferno cheio. Eu nunca vi assim a minha filha. Conheço-a como ninguém e posso garantir que se ela está assim é porque a ofenderam muito. Se alguém tem capacidade para desculpar tudo é ela.

JOANA – Houve tempos em que desculpava mais. Hoje percebo que vivemos num mundo hipócrita, egoísta e destruidor. Calar-me seria pactuar com isso como fosse tudo normal. É preciso chamar aos bois pelos nomes e há muita gente que fica feliz com a desgraça alheia.

ALICE – Abutres.

JOANA – Os abutres são necrófagos, estes comprazem-se em varrerem-nos para debaixo do tapete ou atirar connosco às feras. Acho que são mais parecidos com os cucos.

LUÍSA – (admirada com a referência a essa ave) Cucos?! São animais tão simpáticos. Será que?...

JOANA – Sem dúvida que são simpáticos, apesar de serem caraterizados pela preguiça. Nasceram e cresceram às custas dos outros. O que se pode esperar de pessoas assim?

ALICE – (como se acabasse de acordar, tamanho é o espanto) Estamos a falar de cucos ou de pessoas?

IDÁLIA – Estavas a passar pelas brasas?

ALICE – Ouvi tudo, mas… (encolhendo os ombros) A Luísa falou em cucos, a Joana falou em pessoas. Isto parece uma conversa de surdos: cada um fala do que lhe vai na alma.

JOANA – Eu explico-lhe tudo para perceber o salto brusco que a deixou confusa. A Luísa reagiu à minha comparação entre a cambada que nos inferniza a vida e os cucos que atiram com os ovos e os filhos dos pintassilgos para fora do ninho. Como gosta dos cucos, classificou-os como animais simpáticos e eu concordo com isso. O que fiz a seguir foi como se lhe pedisse para deixar os cucos em paz em pensar nas pessoas que têm o mesmo comportamento. Percebe agora?

ALICE – Assim percebo. Vós esqueceis-vos que estou velha e penso mais devagar. Consigo chegar lá, mas leva-me mais tempo do que a ti e a outras da tua idade. Quando era da tua idade também era capaz de ler as entrelinhas, os sinais e meias palavras. (encolhendo os ombros) Entretanto…

LUÍSA – As coisas mudaram. Mudaram para pior…

JOANA – Ainda bem. O problema é que tínhamos que mudar ao ritmo delas e, por vezes andamos mais devagar. Por educação ou por qualquer outro motivo, achamos que antes é que era bom e nem sempre era assim. Sempre houve pessoas boas e pessoas más.

IDÁLIA – Eram mais as boas do que as más e hoje dá a impressão que as más crescem como cogumelos.

LUÍSA – O maior problema é que são esses espertalhões que se safam. Basta olhar para quem fica desempregado: alguma vez morreu alguém à fome? Andam mais anafados e escovados do que quem trabalha. De algum lado lhes vem o dinheiro para comerem, beberem e passearem de carro.

IDÁLIA – É o Estado que temos. Protege os inúteis transformando-os em parasitas e quem trabalha é explorado até ao tutano. Sentimo-lo nós na escola, mas nos outros serviços públicos ou privados acontece o mesmo. Vou contar-vos a minha reação quando a escola passou a entregar-nos o recibo de vencimento: primeiro olhei e sorri porque me quis parecer que o meu vencimento duplicava de um momento para o outro. Quando pus os óculos e li as letras miudinhas é que percebi que metade do meu vencimento ficava pelo caminho em descontos. Fiquei deprimida.

JOANA – Lembro-me bem desse dia. O pai ajudou a ultrapassar o choque batendo numa tecla que era simultaneamente verdadeira e falsa: aquele que fica em descontos nunca chega a ser nosso.

ALICE – Esse é que é o engano. Aquele chegou a ser nosso como vencimento base. O problema é que depois temos que descontar um montão para sustentar uma máquina administrativa pesadíssima e todos aqueles que não trabalham, os imigrantes enganados pelas redes de traficantes e gente sem escrúpulos que lhes prometem mundos e fundos e os abandonam à chegada, depois de lhes cobraram fortunas que os deixam ainda mais na miséria do que no momento em que decidem deixar para trás a casa e a família. A Europa representa para essa gente a riqueza, a abundância, a tranquilidade… a concretização de um sonho. O que encontram?

JOANA – Colhem bem mais do que semearam.

LUÍSA – Esse é o problema. Andamos poucos a trabalhar para muitos. E então quando pensamos nos políticos? Uma vergonha! Alguns nunca fizeram nada de útil na vida, mas, porque tiveram a sorte de apostar no cavalo certo, têm um futuro risonho à sua frente.

ALICE – Conheço vários casos desses. Conheci-os ainda crianças e pouco dava por eles. Quando os vejo agora, com toda a sua pose a passarem por mim como se nunca me tivessem visto, fico intimamente revoltada.

LUÍSA – Que adianta? Olham para a conta bancária a crescer e isso os satisfaz e é o mais importante.

IDÁLIA – O dinheiro é importante, mas há coisas mais valiosas como a saúde e a vida. Que adianta ter dinheiro se no fim vão entre quatro tábuas os ricos e os pobres.

JOANA – Uma das coisas boas que tem a vida é que a lição que dá nos dois momentos mais marcantes da existência individual: no nascer e no morrer somos todos iguais. Mais, em ambos os momentos somos tão dependentes dos outros que se eles falharem morremos à nascença ou até o direito a uma morte digna nos é negado. Sim, porque só levamos o que a família ou o cangalheiro decidirem. Tantas zangas e traições para quê? É por isso que me custam a engolir os golpes baixos de qualquer pessoa, mas principalmente dos que convivem connosco diariamente.

DIRETOR – (aproximando-se para solicitar o arranjo de uma sala para uma reunião de emergência). Vejo que estão quase a ir embora, mas precisava que me dessem um jeito à sala 4. Vai haver uma reunião. Esteve marcada para o auditório, mas pareceu-me mais sensato mudar de local, atendendo ao reduzido número de participantes que se preveem. (retira-se)

ALICE – Eu devia ter saído há um quarto de hora, mas fiquei aqui na conversa convosco…

IDÁLIA – Vai embora. Nós resolvemos o assunto sem necessidade da tua ajuda.

JOANA – Eu também vou embora. Só estava aqui a fazer sala porque terminei o meu trabalho e o meu marido atrasou-se a vir buscar-me.

IDÁLIA – Com um pouco de sorte ou de azar, tenho que arrumar a sala sozinha. Pouco importa. Enquanto faço isso, estou ocupada.

LUÍSA – És muito estúpida. Que a venham arrumar as colegas que tratam do auditório. Se a reunião fosse lá, também o arrumavam. Assim…

IDÁLIA - … quando há boa vontade…

ALICE – Depois queixamo-nos. Quem havia de fazer o trabalho recebe os muito-bons e os excelentes e nós fazemos o trabalho por elas.

JOANA – A Alice tem razão. Se estivéssemos a falar de outros colegas que são tratados como nós, ainda podíamos fazer mais um sacrifício. Perante situações destas, a primeira coisa que temos que nos perguntar é se as pessoas merecem. Se merecem, ajudem-se; se fazem tudo para dar nas vistas e nos prejudicarem, que se governem.

IDÁLIA – Concordo convosco, mas eu fui habituada a responder sempre que sim a qualquer pedido que a direção me faça. (dirigindo-se para a sala 4) Desculpai lá, mas enquanto estivemos aqui a discutir o sexo dos anjos, tínhamos feito o trabalho e íamos embora felizes e contentes. (voltando-se para Joana) Espera por mim. Vamos as duas quando terminar.

JOANA – (dirigindo-se para a sala) Se é assim…

IDÁLIA – (em surdina para a filha) Custa-me muito ver-te desanimada com a forma como te tratam os chefes, mas tu és igual a mim. Viste que todas arranjaram desculpas para fugirem deste trabalho. Custa assim tanto?

JOANA – É só dispor as mesas para a reunião?

IDÁLIA – As mesas e as cadeiras.

JOANA – É pouco para as duas, mas era mais fácil e mais rápido se fôssemos as cinco. Verá que terminamos e elas inda ali. Apetecia-me ir ter com o diretor para que soubesse que o trabalho está feito, mas fomos as duas a fazê-lo.

IDÁLIA – Deixa lá. Temos que viver com as pessoas que nos são mais simpáticas e com as mais antipáticas.

JOANA – É certo, mas cada um deve colher os louros ou as reprimendas do que faz em vez de colher os louros dos outros e empurrar as críticas para o vizinho do lado.

IDÁLIA – Tu sabes bem como chamo a essa atitude? Querem dar o peido com o cu dos outros.

JOANA – Pois.

IDÁLIA – Dei muito para esse peditório, mas cada vez me apetece menos fazê-lo. Nem me passaria pela cabeça que nos fizessem isto. (dando o trabalho por concluído) Custou assim tanto? Depois queixam-se…

JOANA - (em surdina, dirigindo-se para o cacifo onde vai guardar a bata) Tanta pressa… ainda estão ali as três.

IDÁLIA - É melhor fingir que nada aconteceu. Se nos ouvem falar, ainda levam a mal…

JOANA - Quando se chega a isto, o que se pode esperar? O ambiente entrou num processo irreversível de desagregação.

IDÁLIA - Alguma vez eu lhe fazia isto a alguma delas?! Nem pensar. Elas sabem-no bem.

JOANA - Sabem-no e abusam. Arrancam-te os olhos e cagam-te nas poças, como se ouve com frequência.

IDÁLIA - é verdade, mas fala baixo. A Luísa tem ouvido apurado. Se percebe que estamos a falar delas…

JOANA - Essa nunca me enganou. Quando as pessoas sorriem muito sem nos conhecermos… (depois de uma breve pausa) Foi isso que aconteceu quando cheguei. A título de ser muito tua amiga, estava sempre a pedir a minha ajuda.

IDÁLIA - Tem muito esse hábito, quer na escola quer lá fora. Acha que temos obrigação de a ajudar aos fins-de-semana, mas se precisarmos dela está sempre muito ocupada.

JOANA - Lembro-me muito bem de prescindirmos dos nossos planos para lhe ir valer.

DIRETOR - (passando apressado) Vejo que a sala está em condições de ser usada.

ALICE - Alguma vez desobedecemos às suas ordens? Manda e nós fazemos.

JOANA - (ao ouvido da mãe) É preciso ter distinta lata! Até fico incomodada com o que acabo de ver. Sabia que sempre houve pessoas falsas, mas algumas abusam mesmo. Estás metida num ninho de víboras. Só espero que me surja uma oportunidade de bater com a porta quanto antes.

ALICE - (no mesmo tom de bajulice) O senhor pode ter inimigos noutros sectores, mas aqui só tem amigos. E olhe que nem eu nem as minhas colegas andamos em busca de muitos bons ou excelentes para subirmos na carreira. Deixamos isso para…

JOANA - (agastada com aquele lamechice, deixa desaparecer o diretor e encara a colega de frente) A senhora fale por si. A mim dava-me muito jeito uma avaliação que me permitisse sonhar com uma carreira diferente da que teve a minha mãe. Está à beira da reforma sem nunca ter tido uma promoção ao longo da vida. Qual é a diferença entre ela e as colegas que tiveram uma carreira paralela? Mexem melhor na vassoura ou no pano do pó?

IDÁLIA - Deixa lá. Elas são mais… (cai o pano).

 

 

 ADVERTÊNCIA

O cuco é um animal curioso: aproveita o ninho de outras aves, retira os ovos pré-existentes e acaba por ser criado pelos «pais adotivos». Por outras palavras: o cuco surge como o exemplo do oportunista que se aproveita da ignorância/generosidade alheia para ganhar tempo para gozar a sua vida como lhe apetece.

Há rapazes e raparigas assim.

Há homens e mulheres assim.

Há professoras e professores assim.

Há médicas e médicos assim.

Há frades e freiras assim.

Há estudantes assim.

Há políticos assim.

Há … assim.

Há…

… assim.

Júlio Rocha (14/2/2025)

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