GALFARROS DA RODA
I
Sala de aulas de uma qualquer escola.
Professor de Português e alunos de uma turma mista do ensino profissional, com
alunos entre os 15 e os 25 anos. Quando as luzes se abrem, o professor está a
registar o sumário no quadro faltando apenas a última palavra: Lição número 13 – Análise do episódio do
Adamastor n’ Os Lusíadas. Os alunos estão todos a usar o telemóvel. Dois
primeiros tempos do período da tarde.
PROFESSOR – Sei que a esta hora acusam algum cansaço e, por isso
mesmo, procurarei que a aula se torne leve e agradável, sem deixar de ser
proveitosa e participada. Vou lançar uma pergunta para o ar para ser respondida
por um voluntário: Qual é a estrutura interna d’ Os Lusíadas? (como ninguém se prontificou a responder, o
professor olhou fixamente cada um dos alunos e continuou). Fico admirado
convosco. O cansaço de fim de tarde justifica qualquer coisa, mas a pergunta
que fiz é do mais básico que se pode perguntar sobre esta obra. Vou repetir:
Qual é a estrutura interna d’ Os Lusíadas? (João levantou os olhos do telemóvel e olhou para o professor. Este
apercebeu-se e…) O João sabe a resposta, pois claro. Temos vindo a repetir
a mesma coisa há uma série de aulas.
JOÃO – (olhando fixamente
de novo o telemóvel e totalmente alheado
de tudo o que acontece à sua volta) O professor pode até ter razão, mas
acredite que, se falou disso na aula anterior, esqueci-me totalmente. Agora
deixe-me terminar de escrever uma mensagem urgente e depois podemos falar disso
e de tudo o que o professor quiser.
PROFESSOR – Vá lá, arrume o telemóvel durante a aula e mande a
mensagem no fim.
JOÃO – É urgente.
PROFESSOR – Vós e as vossas urgências!... Tudo é urgente menos o
aprender. Canso-me a repetir a informação, perdemos o nosso tempo e continuais
sempre na mesma. Se fosse matéria nova, até fazia sentido que tivésseis
dificuldade em responder, mas assim…
MADALENA – Faço minhas as palavras do João: se o senhor professor
alguma vez falou disso, esqueci-me totalmente.
PROFESSOR – Mais uma?! (os
alunos foram levantando o dedo em sinal de pertença ao grupo dos que nunca
tinham escutado tal coisa. O Professor espuma de raiva) Estranho, acho
mesmo muito estranho. Há vinte e quatro horas que repeti essa informação.
Sublinho: repeti. Fi-lo porque me apercebi que havia alguma confusão nas vossas
cabeças e, como é um dado relevante, preferi voltar a ele antes de passarmos ao
episódio do Adamastor que leram em casa. Como pode alguém reagir da forma que
vós estais a reagir?
JOÃO – Até estou incomodado comigo. Como pode acontecer uma cena
destas se ainda me lembro do que estive a fazer nas aulas da semana passado.
PROFESSOR – Ótimo. Elogio a tua memória. Então faz lá um
esforcinho.
JOÃO - Deu-me uma branca sobre o que o senhor professor disse, mas
recordo-me que estive...
PROFESSOR - … no telemóvel. É o habitual. Se ao menos fosses o
único…
JOÃO - … sou único no meu telemóvel. Os meus colegas…
PROFESSOR – Deixemo-nos de discussões estéreis. Alguém pode ajudar
o João? (Ninguém o ouviu). Haja um
voluntário para responder à pergunta que fiz.
(a turma em peso fica em silêncio e continua a mandar e receber
mensagens, usando os dedos em vez da cabeça).
PROFESSOR – É impossível que nem a Marta tenha percebido esta parte
da matéria.
MARTA – Pode repetir a pergunta, senhor professor?
PROFESSOR – Estavas distraída?! Que seja a última vez. Qual é a
estrutura interna d’Os Lusíadas?
MARTA – Texto, imagens, notas e comentários?
PROFESSOR – (incrédulo)
Como?! Do que estás a falar?
MARTA – É uma conversa privada, mas respondo, uma vez que me
pergunta. Estava a mandar uma mensagem à Inês a combinar a festa de anos da
minha irmã.
PROFESSOR – E que tem isso a ver com a pergunta que fiz? O que
quero saber é como se chama cada uma das partes d’Os Lusíadas.
JOÃO – Eu sei. Posso responder?
PROFESSOR – (com um sorriso
de apreço por aquele gesto numa altura em que a conversa estava a ser com a
melhor aluna da turma) Muito bem, João. Responde com clareza para que todos
os teus colegas percebam.
JOÃO – Acho que são as partes de aquém e de além-mar. (perante o sorriso dos colegas que até se
esqueceram dos telemóveis para observar a reação do professor, continuou)
Também podemos falar da parte de baixo e da parte de cima das naus.
PROFESSOR – Esperava que desses um contributo significativo para
avançarmos, mas falhaste. A Marta consegue referir-me as partes d’ Os Lusíadas?
MARTA – Acertei alguma na resposta anterior?
PROFESSOR – Falhaste e por isso é que reformulei a pergunta.
MARTA – (pousando o telemóvel
no canto da mesa para dar atenção à pergunta. Entretanto o telefone vibra)
O senhor professor desculpe, mas é a minha mãe que está a ligar. Vou atender
porque pode ser alguma coisa urgente.
PROFESSOR – A tua mãe sabe que estás numa aula. Que ligue noutra
hora.
DINIS – O senhor professor também gostava que lhe fizessem isso:
que o proibissem de atender o telefone se a sua esposa lhe ligasse por um
motivo válido?
MARTA – (atendendo o telefone
e sorrindo descontroladamente) O professor de Português queria que
recusasse a chamada. Posso dar a novidade? (com
a autorização dada do outro lado, gritou eufórica) Tenho mais um mano.
CARLOS – Está a ver. Afinal havia uma boa notícia que tinha para a
Marta e para nós.
PROFESSOR – Parabéns, Marta. Se quiseres ir ver o teu irmão…
MARTA – Obrigada, professor. A minha mãe e o meu irmão ainda estão
no hospital. Prefiro continuar na aula e responder ao que me perguntou. Deixe
ver se me recordo. (arregalando os olhos
em direção ao quadro onde constava apenas o sumário da aula). O senhor quer
saber quais são as partes d’ Os Lusíadas.
PROFESSOR – Isso mesmo.
MARTA – Ora bem. Estamos a falar de um livro muito velho e que o
senhor professor conhece bem.
PROFESSOR – Isso mesmo.
MARTA – Se é um livro, tem que ter uma capa e várias folhas
escritas sobre qualquer coisa.
PROFESSOR – Até ao momento, estás a acertar em tudo, mas...
MARTA – Ainda falta muito para considerar a minha resposta
completa?
PROFESSOR – Tudo, ou melhor, o essencial. A tua resposta, até ao
momento é tão válida para Os Lusíadas
como para qualquer outra obra.
MARTA – (desagradada com o
sorriso escarninho dos colegas e com as piadas que lhe enviavam para o
telemóvel) Sendo assim… O senhor professor deixa-me ir ver o meu
irmãozinho?
PROFESSOR – Dá um beijinho de parabéns à tua mãe. Oxalá que tudo
corra como ela deseja.
MARTA – A ver pelo começo…
PROFESSOR – (descobrindo
algum desconforto naquelas palavras, tenta deitar água na fervura) Sabes,
Marta, muitas vezes Deus escreve direito por linhas tortas. Desconheço o que te
leva a afirmar que houve qualquer anomalia no começo, mas tudo irá resolver-se
tranquilamente com o tempo.
MARTA – Esqueça. Foi só um desabafo que bem podia ter evitado, mas
enfim. Às vezes saem-me as palavras da boca antes de pensar. Posso sair sem
falta?
PROFESSOR – Claro que sim. Há momentos em que o coração fala mais
alto do que a razão e tu estás a viver um momento desses. Só quem passa por
eles é que sabe do que estamos a falar. Passei por emoções dessas como irmão,
como pai e como avô.
MARTA – Amanhã mostro a fotografia. Até amanhã.
TODOS – Até amanhã… até amanhã… até amanhã (berraram todos os colegas com o professor a gesticular para que
falassem baixo porque havia outras turmas a terem aulas nas salas ao lado
enquanto se ouviam gritos isolados de alguém que só se apercebeu do que estava
a acontecer quando ouviu os colegas).
PROFESSOR – Desculpem o tempo que desperdiçámos a falar do
nascimento do irmão da Marta, mas ela merece esta nossa manifestação de
solidariedade. Afinal há em toda esta história um misto de felicidade e
desencanto, como ficou subentendido nas palavras dela.
CRISTINA – Quer saber ao que se estava a referir?
PROFESSOR – Há coisas que é preferível desconhecer ou… fingir que
desconhecemos.
DANIEL – Mas… professor. Só podemos fingir que desconhecemos se
conhecermos realmente.
PROFESSOR – Tens razão, mas deixemos este tema sem mais. Se a Marta
quiser falar dele alguma vez…
CRISTINA – Posso referir um pormenor que pode ajudar a perceber
tudo?
PROFESSOR – É preferível deixar para quando a Marta estiver
presente.
(Os alunos estavam mais interessados em falar do irmão da Marta do que
d’ Os Lusíadas. O professor, pelo contrário, queria avançar com a matéria
porque o teste de avaliação estava a aproximar-se e estava a aperceber-se que
os alunos estavam em branco).
BEATRIZ – E se oferecêssemos um ramo de flores à mãe da Marta em
nome da turma?
PROFESSOR – É uma iniciativa muito louvável. Podeis contar com a
minha participação.
RUFINO – Que forretice. Podia pagar o ramo e oferecíamo-lo em nome
da turma.
TURMA – Boa, boa (gritaram em
coro).
PROFESSOR – É um assunto a pensar, mas agora voltemos à aula.
Passou metade do tempo e ainda continuamos sem avançar nada.
RUFINO – Deixe lá. Há assuntos mais interessantes do que Os Lusíadas, como por exemplo este.
PROFESSOR – Até parece mal que alguém diga isso, Rufino. Estamos a
falar da obra mais importante da língua portuguesa.
RUFINO – (sem olhar para o
professor) Eu sei. Estava a referir-me ao que estou a ver aqui. A Marta
mandou-me uma mensagem a perguntar se…
PROFESSOR – Esqueçamos a Marta por agora. Na próxima aula,
certamente que nos mostrará as fotografias do irmãozinho. (Estas palavras provocaram sorrisos generalizados na turma, deixando-o
incomodado com o que estava a observar). O que te perguntou de tão hilariante?
RUFINO – Se o senhor professor tinha acreditado que ela tinha mais
um irmão.
PROFESSOR – Claro que acreditei. Acredito nela e acredito em todos
os meus alunos. Por que haviam de mentir?
RUFINO – O senhor lá sabe (gargalhadas
gerais).
BEATRIZ – (levantando a mão)
O Rufino é um bufo. (voltando-se para o
colega) Para que estás com essas coisas. Ganhas alguma coisa em estar a dar
graxa ao professor? Ela mandou a mesma mensagem para todos e ninguém chibou. Lá
fora falamos.
PROFESSOR – (tentando acalmar
os ânimos exaltados que dominavam o momento) Há coisas que prefiro fingir
que desconheço. O que está a acontecer é uma delas. Vou repetir a pergunta que
fiz no início da aula e que continua sem resposta. Qual é a estrutura interna
d’ Os Lusíadas.
JOÃO – O professor tem a certeza que falou disso em alguma aula
anterior?
PROFESSOR – Absoluta. (furibundo
por ter que repetir a mesma coisa pela oitava vez e ficar convencido que seria
necessário repetir muitas mais pois apercebia-se que ninguém estava a prestar
atenção ao que ele registava no quadro, ocupados como estavam com os telemóveis
e tablets). Quase a completar trinta anos de carreira, é a primeira vez que
me acontece ter a nítida sensação de estar a falar para as paredes.
DULCE – Está a exagerar. Eu ouvi essa parte da matéria cada vez que
a expôs e esta é apenas a segunda vez. O senhor pode ter abordado o mesmo
assunto noutras turmas e estar a fazer confusão. Na nossa…
PROFESSOR – (abrindo o livro
de ponto e verificando do fim para trás) Então vejamos: faz hoje duas
semanas que começámos a abordar a epopeia camoniana. Logo nessa aula registei
no sumário: «Estrutura externa e interna
da obra». Consulte o seu caderno diário e verifique se registou, Dulce.
DULCE – Terei faltado à aula nesse dia? É que no meu caderno
falta-me esse sumário.
PROFESSOR – Se faltou, esqueci-me de registar a respetiva falta.
Mas vamos continuar. Na lição seguinte registei: «Semelhanças e diferenças entre a estrutura das epopeias clássicas e a
epopeia camoniana». Registou este sumário e alguma informação das que
registei no quadro.
DULCE – Apenas registei o sumário.
PROFESSOR – Alguém registou as informações que dei? (o professor ficou a aguardar a resposta de
algum aluno, mas ninguém lhe ligou. Repetiu) Alguém registou as informações
que dei sobre as semelhanças e diferenças que há entre a estrutura interna e
externa d’ Os Lusíadas e a Odisseia ou a Ilíada, por exemplo?
DULCE – Eu sei responder: só Os
Lusíadas é que foram escritos em português.
PROFESSOR – Isso é verdade, mas, como sabem, Luís de Camões seguiu
os modelos clássicos quanto à estrutura. A única inovação, se quisermos
chamar-lhe assim foi a dedicatória da obra ao rei de Portugal. Lembram-se como
se chamava o rei?
RUFINO – Rei de espadas.
PROFESSOR – (admiradíssimo
com o que ouvira) Rei de espadas?! Onde foste buscar tamanho disparate?
RUFINO – O baralho só tem quatro reis. Cheguei à resposta por
exclusão de partes. Rei de paus foi um que mandou semear o pinhal de Leiria;
rei de copos foi o que mandou plantar as vinhas do Douro; rei de ouros foi o
que mandou construir o convento de Mafra… ou será que foi o que mandou
construir o Mosteiro dos Jerónimos?
A turma inteira ficara atónita com aquele disparate e esqueceu por
momentos o jogo ou a conversa que estava a ter no telemóvel. Do fundo da sala
ouve-se:
ZÉ CARLOS – É burro.
RUFINO – Estás a gozar comigo ou quê. O rei vale mais do que o
burro. Tu alguma vez jogaste a sueca? O burro só vale três pontos e o rei vale
quatro. Vens ensinar-me a mim a jogar. Vê lá se queres perder uma cola. Escolhe
parceiro.
PROFESSOR – Calma. Essa discussão é para outros contextos. Aqui
estamos a falar de D. Sebastião. Era um rei muito jovem quando começou a reinar
e morreu muito novo numa batalha no norte de África.
MARGARIDA – Coitado!... E os guarda-costas conseguiram prender ou
matar o agressor?
DULCE – A Margarida nunca ouviu falar de D. Sebastião porque faltou
nessa aula, qual é a admiração.
PROFESSOR – Tens razão. Esteve a faltar durante uma semana e pode
muito bem ter coincidido com a aula em que falei desse tema. Então vou repetir
tudo por causa dela e de todos os que estiveram distraídos ou se recusaram a
registar no caderno diário.
O professor regista no quadro: Os
Lusíadas estão divididos em quatro partes: proposição, invocação, dedicatória e
narração.
DULCE – O senhor professor também dá erros? Pensei que só acontecia
isso aos alunos.
PROFESSOR – Um erro pode acontecer a qualquer um. Ninguém é
perfeito.
DULCE – Na primeira palavra a seguir aos dois pontos enganou-se. Em
vez da letra E escreveu um O.
PROFESSOR – (atrapalhado com a correção, olha e respira de alívio).
Percebo a tua dificuldade e aproveito para pedir a vossa atenção para a
proximidade entre a palavra em que está a pensar a Dulce e esta que registei.
Como sabeis, são palavras parónimas, ou seja muito parecidas na escrita e na
leitura. Existe a palavra proposição que está ali escrita e a palavra
preposição. Alguém me sabe dar um exemplo de preposição?
ZÉ CARLOS – As armas e os
barões assinalados / que da ocidental praia lusitana…
PROFESSOR – Esses versos fazem parte da proposição. Preposição é
uma classe de palavras. Temos outras, mas só nos referimos a esta porque a
Dulce levantou a dificuldade se estaria bem escrita a palavra proposição.
ZÉ CARLOS – E está? Soa-me mal.
DULCE – Estavas distraído ou quê? O Prof classificou-as como palavras
paródias. (fazendo o gesto de passar a
mão em frente dos olhos para lhe mostrar que é tapadinho) Ahhh!.. .É mais
brincadeira, menos brincadeira.
PROFESSOR – (soletrando
enquanto regista no quadro) Pa – ró – ni – mas. Vou repetir este conceito:
são palavras que têm uma escrita e uma pronúncia muito parecida.
RUFINO – Eu sei ao que se está a referir. Às músicas do Quim
Barreiros. Faz paródia com as palavras.
PROFESSOR – Fico admirado com a vossa imaginação.
RUFINO – Imaginação?! Ele é que brinca com as palavras para tornar
as letras engraçadas.
DULCE – Muito engraçadas. Eu curto bué.
PROFESSOR – A palavra mais indicada para as classificar, em vez de
engraçadas, seria brejeira.
DULCE – Então o senhor professor conhece essas músicas!... São bué
de fixes.
PROFESSOR – Claro que conheço, mas deixemos esse assunto. Estávamos
a falar da estrutura interna d’ Os
Lusíadas e onde viemos parar.
RUFINO – Desculpe, mas estávamos a falar de palavras paródias ou
braseiras (risada geral).
DULCE – Palavras quê?!!
PROFESSOR – Nem uma coisa nem outra: parónimas. A partir destas é
que me empurrastes para a música pimba e as palavras brejeiras.
RUFINO – Ou isso. Qual é a diferença?
PROFESSOR – Estou cansado de estar sempre a repetir as mesmas
coisas. Vamos avançar e quem quiser aprender tem que estar atento, quem optar
por continuar a brincar vê os outros avançar e fica para trás. Rapazes e
raparigas de dezasseis anos ou mais são responsáveis pelos seus atos e pelas
suas opções.
LEONOR – Que sorte a minha. Só faço os dezasseis anos no próximo
mês.
RITA – (levantando-se do
lugar e dirigindo-se de forma ameaçadora à colega) Alto aí. A mais nova da
turma sou eu.
LEONOR – Eu sei. Calma. Eu dirigi-me ao professor para deixar claro
que sou uma exceção.
RITA – Ok. Somos as duas.
PROFESSOR – Estão a agarrar-se ao acessório. O que destaquei foi
que tínhamos urgência em avançar na abordagem dos conteúdos programáticos. A
referência à idade foi um argumento que me parecia pacífico na medida em que
estava a tratar-vos como rapazes e raparigas que sabem o que fazem. Aos
dezasseis anos todos começam a ter uma personalidade definida e sabem fazer as
melhores opções para as suas vidas.
LEONOR - Isso significa que, aos seus olhos, nós somos
irresponsáveis pelos nossos atos e opções. (com
indisfarçável enfado) Só me faltava agora esta! Em casa, levo com a minha
mãe a acusar-me de ser irresponsável; chego à escola e levo o mesmo sermão.
Assim fico sem saber onde me sinto confortável.
RITA – Esquece. Responde à mensagem que te mandei.
LEONOR – (olhando atentamente
para o telemóvel). Pode lá ser! Estás a brincar comigo. (escreve a resposta à mensagem de Rita nestes
termos: Tu conheces a mãe da Marta?)
RITA – Claro que sim. (resposta
escrita no telemóvel: Somos vizinhas).
PROFESSOR – Rita e Leonor, estão a perturbar a aula. Imagino que
estejam a falar de coisas interessantes, mas deixem-nas para o intervalo. Vamos
continuar a nossa aula. Se houver alguma dúvida, coloquem-na no final da aula
para aproveitarmos melhor o tempo que nos resta.
RITA – Estou a ficar maldisposta. Posso ir apanhar um pouco de ar?
LEONOR – Posso ir com a Rita? É a minha melhor amiga e pode
precisar da minha ajuda.
PROFESSOR – A Rita pode sair, mas…
RITA – Deixe-a vir, professor. São coisas de mulheres.
PROFESSOR – Nesse caso…
JOÃO – Eu sei, ou melhor, eu acho que sei o que foram fazer.
PROFESSOR – Se são coisas de mulheres…
RUFINO – Foram ter com a Marta.
JOÃO – (exaltado) Bufo.
Lá fora parto-te os queixos.
PROFESSOR – Há aqui qualquer coisa que gostava de perceber. Acham
que a Marta…
RUFINO - … foi ter com o namorado.
(a turma inteira fica revoltada com aquela revelação. Mexem-se nos
lugares, dão murros nas mesas, fazem gestos ameaçadores)
RUFINO – A Rita e a Leonor foram ter com ela ao café. O João teve
receio de continuar a frase, mas era nisso que estava a pensar. Ora confessa
lá, João.
JOÃO – Ao contrário de ti, eu sei guardar um segredo. Pela minha
boca, o professor nunca saberá o que se passa com alguém da turma. Se continuas
assim, podes ter a certeza que vais acabar mal.
PROFESSOR – Deixemo-nos dessa discussão inútil e aproveitemos estas
ameaças para vermos se há alguma ligação entre esta realidade e aquilo que
acontece n’ Os Lusíadas. Eu dou uma
ajuda: há uma personagem que ameaça os portugueses de morte se insistissem em
continuar com os seus propósitos de chegar à Índia. Sabem quem foi essa
personagem?
MARGARIDA – O rei de Espanha. Só podia ser ele. Os espanhóis
andavam sempre a tentar invadir Portugal.
PROFESSOR – Que os espanhóis tivessem alguma inveja do sucesso dos
portugueses nessa cruzada de chegar à Índia, é possível que assim tivesse
acontecido, mas na obra é referida uma personagem com aspeto aterrador que
ameaça os nautas com a morte se ousassem invadir um espaço que ele considerava
seu. Falámos dessa personagem na aula passada. Vejam no vosso caderno.
ZÉ CARLOS – Tenho aqui um nome, mas deve estar errado: Sepúlveda.
Acho que é um autor que morreu de covid.
PROFESSOR – Estás a pensar em Luís Sepúlveda, um autor chileno que
estabeleceu residência em Espanha por questões de segurança pessoal e faleceu,
de facto, em abril de 2020 com Covid 19. Mas, Zé Carlos, isso que estás a
referir é um anacronismo enorme. Estamos a falar de uma obra escrita no século
XVI e tu falas-me de um acontecimento do século XXI. Na obra aparecem
prolepses, mas referentes a um futuro mais próximo dos acontecimentos narrados.
ZÉ CARLOS – Pró quê?!...
PROFESSOR – Prolepses. É o contrário de analepse. A analepse é um
recuo no tempo. A prolepse é uma antecipação de acontecimentos futuros.
MARGARIDA – Posso dar um exemplo para cada um desses conceitos?
PROFESSOR – Faça favor.
MARGARIDA – Os Lusíadas podem ser considerados
uma analepse e o filme Duna é um
ótimo exemplo para a prolepse.
(o professor fica a olhar para a Margarida sem saber bem como reagir).
MARGARIDA – É um filme de ficção científica de 2021. Vale a pena
ver.
PROFESSOR – Confesso que gosto muito de cinema e verei esse filme
na primeira oportunidade, mas agora estamos a falar de uma obra de valor
universal. Tudo o que possa ser interessante da atualidade traz a marca da
efemeridade comparado com obras como esta que estudamos, mas também comparado
com outras que sobreviveram à voragem dos séculos como por exemplo a Ilíada
ou a Odisseia
de que falei como fontes onde Luís de Camões foi buscar o modelo para redigir a
sua obra.
ZÉ CARLOS – O senhor professor falou em fontes? Pensei que a fonte
mais importante desta obra fosse a Fonte dos Amores.
PROFESSOR – Iremos falar dessa fonte a propósito de um episódio
muito triste na nossa história, mas cada coisa a seu tempo. Respondendo ainda à
questão levantada pela Margarida, convém esclarecer que a analepse é uma forma
de lidar com o tempo numa narrativa. O narrador pode apresentar os
acontecimentos na sequência em que eles ocorreram, pode ir buscar um
acontecimento anterior que ajuda a perceber o que está a acontecer naquele
momento. Isto seria uma analepse. Também pode antecipar o que vai acontecer
mais tarde.
RUFINO – Tipo a Maia. Ela faz as previsões no início do ano e
acerta muitas vezes.
PROFESSOR – As previsões, os horóscopos e as profecias são exemplos
de prolepses, sim senhor. Têm o seu interesse e há muita gente que as encara
como uma certeza.
JOÃO – Está a parecer-me que também lê os horóscopos. Há jornais
que os publicam com regularidade.
PROFESSOR – Cada leitura no seu lugar…
JOÃO – Houve um tempo em que lia a parte referente ao meu signo,
mas cansei-me. Nunca acertava. Quando previa que ia ter sorte no jogo e azar no
amor, ficava atento.
PROFESSOR – E?...
JOÃO – Tinha azar nas duas coisas, veja lá. A única coisa em que
acertava quase sempre era na referência à saúde. Eram previsões sempre
favoráveis. Pudera! Com dezasseis anos…
PROFESSOR – Quem faz essas previsões tenta acertar em relação a
quem como tu tem dezassete anos, a quem tem mais e a quem tem menos.
JOÃO – Eu sei, mas cansei-me de sofrer desilusões. Escolhia os
números que eram referidos como favoráveis e nunca tirei nada no Euro milhões.
PROFESSOR – Para e pensa um bocadinho. Se esses números fossem
seguros, aconteceria uma de duas situações: quem os descobrisse usava-os em seu
proveito e teriam que ser iguais para todos os signos.
JOÃO – Pensando bem…
MADALENA – Só te apercebeste agora? Tu de que signo és?
JOÃO – Balança. E tu?
MADALENA – Queres mesmo saber?
JOÃO – Quero pois.
MADALENA – Professor, posso responder?
PROFESSOR
– Se isso ajuda a perceber que os números da sorte são diferentes…
MADALENA – Ajuda. Eu sou Virgem.
Alvoroço geral.
MADALENA – O senhor professor acha isto normal? Estão a meter-se
comigo. Posso mandá-los a um sítio?
PROFESSOR – A língua portuguesa é traiçoeira! Tu estavas a
referir-te a uma coisa e os teus colegas levaram para outra bem diferente.
MADALENA – São malucos. Eles é que são virgens.
PROFESSOR – Chega. Toda a gente percebeu que é um erro de
palmatória ler as previsões para cada signo com espírito científico. As coisas
têm que ser lidas e interpretadas no seu contexto.
JOÃO – Então fiz bem em deixar de ler essas coisas?
PROFESSOR – Se ao deixar de ler esse tipo de texto representou
deixar de ler, sem mais, fizeste mal. Se foi uma opção por outro tipo de textos
como, por exemplo, uma peça de teatro, um livro de poesia, um romance ou uma
novela…
JOÃO – Novelas?! Em minha casa só a minha mãe e a minha irmã é que
gostam de novelas. Eu e o meu pai…
PROFESSOR – Estás a fazer confusão entre novelas e telenovelas.
RUFINO – É a mesma coisa. Quando ouço às minhas vizinhas que têm
pressa em chegar a casa para ver a novela…
PROFESSOR – Há muita gente com essa confusão. Querem que faça a
distinção para nunca mais esquecerem?
Ninguém ouviu a pergunta. O João e o Rufino tinham desligado daquela
conversa e estavam a redigir uma mensagem no telemóvel.
PROFESSOR – (em surdina e sob
a forma de aparte) Quem cala consente. (levantando
a voz) Então fixem: uma novela é um texto narrativo, um livro, se quiserem;
uma telenovela é um filme em vários episódios. Percebido?
MADALENA – Eu sabia. Mas então ainda acrescento mais um pormenor:
as telenovelas viciam e as novelas…
JOÃO – Alto aí. Tenho um vizinho que devora livros.
PROFESSOR – E faz ele muito bem. A leitura é importante. Cada vez
que lemos um livro, aprendemos algo de novo.
RUFINO – Bô! Só se for consigo. Eu, mal começo a ler, adormeço.
Olhe, ainda ontem estava a ler as estâncias que nos mandou estudar em casa e
sabe o que me aconteceu? Adormeci tão profundamente que deixei cair o livro em
cima do meu gato.
PROFESSOR – Pobre bicho! Estava no sítio errado.
RUFINO – Estava ao meu colo. É onde costuma estar quando me vê
sentado. Ele sabe bem escolher onde lhe convém estar.
PROFESSOR – Ouvi muitas vezes que «o cão e o menino vão para onde sentem o carinho». Sobre gatos…
RUFINO – É a mesma coisa. Quem acha que
desconhecem o dono está a ser injusto para com esses animais.
PROFESSOR – Também acho. Mas é assim com qualquer animal. Os
animais selvagens dos jardins zoológicos ou dos circos também reconhecem o
tratador.
JOÃO – Aí mais devagar. Quase todos os anos acontecem situações
fatais com animais desses meios. Ainda há dias lia que foi necessário abater a
tiro um leão para salvar um tratador.
PROFESSOR – Todas as regras têm exceções. Foi um caso isolado e tão
pouco representativo do que acontece na generalidade das situações que ninguém
lhe deu grande importância. Continua a haver leões em todos os jardins
zoológicos.
MADALENA – Estou a gostar desta parte da aula. Afinal o professor é
fixe quando quer.
ZÉ CARLOS – (colocando a mão
a tapar a boca para enganar o professor) Raramente.
PROFESSOR – Obrigado, mas isto é totalmente à margem do que tinha
planeado para esta aula. Contava de falar do Gigante Adamastor e estamos a
falar de…
MADALENA - … de animais perigosos.
RUFINO – Bô! O meu gato é um animal pachorrento. Quem o vir pode
pensar que é velho, mas ainda só tem dois anos. E quer saber uma coisa? Fui eu
que o salvei.
PROFESSOR – Bravo! É um crime abandonar ou maltratar os animais.
Gosto de saber que tens esse gosto por animais.
RUFINO – Porquê? Imaginava que era cruel com os animais? Está enganado.
Quem matou as galinhas da vizinha à pedrada foi…
DANIEL – (sentindo-se acusado)
Cala a boca, urso. Deixo-te sem dentes lá fora.
RUFINO – Está bem. Eu calo-me porque quero ou pensas que me
assustas. Dava-te tamanha malha…
DANIEL – Queres ir lá para fora?
PROFESSOR – Tenham calma. A aula até estava a passar por um momento
tão calmo… Além do mais, sempre foram amigos.
DANIEL – Isso é o que lhe parece. Como posso ter na conta de amigo
quem me trai para agradar aos professores?
RUFINO – Bô! Estás a insultar-me. Tem cuidado que te pode sair cara
a brincadeira.
DANIEL – Anda para a rua. Lá fora falamos.
RUFINO – O senhor professor deixa-me ir lá fora dar uma lição ao
Daniel? Está a pedi-las.
DANIEL – (levanta-se do lugar
e dirige-se ao colega que lhe responde com um empurrão que o tomba) Vais
pagá-las, ai vais. (tenta avançar para
Rufino e este empurra-o novamente obrigando o professor e a turma a separá-los
e repor a ordem).
PROFESSOR – Isto parece uma cena de loucos. Uma conversa sobre a
queda do livro das mãos do Rufino em cima do gato traz-nos até aqui porquê?
DANIEL – (ofegante)
Porquê, porquê? Porque ele me acusou duma coisa…
RUFINO - … que todos sabem que foi verdade.
PROFESSOR – Desconhecia, francamente que desconhecia.
DANIEL – Estás a ver. O professor desconhecia, mas tu gostas de lhe
revelar estas coisas para quê, hã? (enraivecido)
Bufo!... Graxa!...
PROFESSOR – Ou se calam e continuamos a nossa aula ou tenho que
chamar algum elemento da direção.
MADALENA – Ponha-os na rua. Estão a perturbar a aula. (voltando-se para os colegas desavindos)
Vós que bebestes? Ou?… pareceis drogados?
RUFINO – Nem fumo nem bebo sua…
PROFESSOR – Tenham calma. Estamos a perder tempo precioso da nossa
aula com assuntos marginais.
MADALENA – Marginais. O Rufino e o Daniel são colegas fixes. Hoje
deu-lhe para isto, mas daí a serem marginais…
PROFESSOR – Os assuntos é que são marginais. Nós estamos a falar d’
Os
Lusíadas e, de repente, estamos a falar de temas que nada têm a ver com
isso. Era a isto e só a isto que me referia quando me referi a assuntos
marginais. Eu sei perfeitamente que os vossos colegas são bons rapazes.
DANIEL – Acha?! Então porque me deu negativa? Se achasse que era
bom rapaz, que me portava bem nas aulas…
PROFESSOR – Há sempre a possibilidade de melhorar e tenho a certeza
que vai acontecer se quiseres. Tens capacidades para obter resultados
francamente positivos. Se te aplicares um bocadinho…
DANIEL – É sempre a mesma conversa. Já me cansei de ouvir essas
lições de moral. Essas e outras.
RUFINO – (entredentes)
Pouco aprendeste. Pudera! Estar a ensinar burros e a perder neles!...
PROFESSOR – (ameaçador)
Rufino. Estás a atirar achas para a fogueira para quê? Devem tratar-se com
respeito uns aos outros.
RUFINO – Desculpe. Estava a falar apenas para mim… para os meus
botões.
(a campainha toca a anunciar o fim da aula)
PROFESSOR – É uma pena que a aula termine sem termos avançado nada
na matéria. Tentaremos recuperar o tempo perdido na próxima aula. E já agora,
tenham juízo lá fora. Nada de cenas de pancadaria.
ZÉ CARLOS – Fique descansado. Eu tomo conta deles.
PROFESSOR – Acredito em ti e no bom senso de todos. Vejam lá se são
uns homenzinhos ou se voltam ao tempo do infantário.
II
(Na sala encontra-se apenas o professor durante algum tempo e vai
conversando com os seus botões)
PROFESSOR – Esta juventude está perdida. Ainda eu me queixava
quando comecei a trabalhar!... Nessa altura ainda havia quem estivesse
interessado em aprender. Neste grupo… neste grupo… bem, neste grupo contava que
se aproveitasse a Marta. A ser verdade o que insinuaram os colegas…
MARTA – Desculpe ter faltado à aula anterior. Tive que…
PROFESSOR – Ainda bem que foi a primeira a chegar. Queria
colocar-lhe uma questão suscitada pela reação dos seus colegas após a sua
saída.
MARTA – Deixe-me adivinhar. O Rufino…
PROFESSOR – Pouco importa quem pôs em causa a tua honestidade, mas
queria que me explicasse porque se ausentou.
MARTA – Posso ser clara e direta consigo?
PROFESSOR – Claro que sim. Eu gosto da frontalidade.
MARTA – A aula estava a ser uma seca e para ajudar à festa o meu
namorado teve furo.
PROFESSOR – Isso significa que…
MARTA - … fui ter com ele
PROFESSOR – E como te foste lembrar de usares o nascimento de um
irmão para me convenceres?
MARTA – É simples: sei que o professor tem um coração de manteiga
e, quando lhe falam ao sentimento, cede logo à primeira.
PROFESSOR – Espero que seja a última vez que recorres a essas
artimanhas para fugires às tuas responsabilidades de melhor aluna da turma.
Após uma pausa em que professor e aluna se olharam de frente cada um à
espera que o outro falasse, entra um turbilhão de alunos que se abraçam a Marta
e ao professor.
PROFESSOR – Mas que é isto, mas que é isto?
ZÉ CARLOS – É o nosso professor preferido. Sabe que gostamos muito
de si. A matéria é que é uma seca.
PROFESSOR – Discordo dessa apreciação, mas ainda bem que hoje
esquecemos a educação literária e vamos dedicar esta aula ao funcionamento da
língua.
MARTA – (lambendo o lábio
superior) Gosto mais dessa cena.
RUFINO – Olha esta! Estás a pensar que a aula vai ser de educação
sexual. Estás bem enganada!
MARTA – És maluco ou quê. O professor não fica rosado por falar da
língua, dos lábios e de qualquer parte do corpo.
PROFESSOR – Para acalmar os ânimos e centrarmos a nossa atenção no
essencial, anuncio que hoje vamos falar de orações finais.
MADALENA – Mau, mau! Falar de orações era antipático, mas serem
finais piora ainda mais a situação. Que temos nós a ver com os mortos?
PROFESSOR – Com os mortos?! Do que te foste lembrar, Madalena.
MADALENA – O senhor professor pode desconhecer isto, mas eu fui
catequista no ano passado e este ano só rejeitei por falta de tempo. Até
gostava bué.
PROFESSOR – E daí?!
MADALENA – Sei que há orações ou sacramentos ou coisa parecida para
os moribundos.
ZÉ CARLOS – (rindo a
bandeiras despregadas) Tu é que tens a maior bunda.
MADALENA – (mostrando-lhe a
ponta da língua) Estúpido. És maluco.
PROFESSOR – Sei perfeitamente do que me está a falar, mas nós vamos
falar de frases complexas e mais especificamente de orações subordinadas
adverbiais finais.
ZÉ CARLOS – Isso tem alguma coisa a ver com bundas? Até devia ser
fixe. A Madalena estava para ali a falar de bundas, de igreja de cá te cresce.
MADALENA – Catequese, palerma. Sabes o que é isso?
ZÉ CARLOS – (mexendo no cinto
e nas calças) Queres que te mostre?
PROFESSOR – (irritado com o
abuso) Zé Carlos, estamos numa aula. A tua colega e todos os outros merecem
mais respeito. Até acho que lhe devias pedir desculpa à colega.
ZÉ CARLOS – Eu peço.
MADALENA – Dispenso as tuas simpatias seu palhaço. Ainda tens que
comer muito caldo para seres um homenzinho.
ZÉ CARLOS – (irritado)
Está a ver. Depois eu é que sou o mau?
PROFESSOR – A linguagem e os gestos obscenos é que estão mal. Isso
é condenável em ti e em qualquer outro.
RUFINO – Pode repetir a palavra?
PROFESSOR – (preocupado e
atrapalhado com o pedido) A palavra?!
RUFINO – A que usou para classificar a linguagem e os gestos do Zé
Carlos
PROFESSOR – Obscenos?
RUFINO – Pode escrever a palavra no quadro.
MARTA – Para quê, ó anormal? Faz-te alguma falta?
RUFINO – Pode fazer?
MARTA – Pensa em ti. O que vês à tua frente?
RUFINO – (galhofeiro) As
tuas mamas.
MARTA – Pensei que ias referir o esquadro, mas aí está. Se achas
que os meus seios são um triângulo retângulo…
RUFINO – Só vendo ao vivo e a cores.
MARTA – Quando temos um triângulo retângulo podemos falar e cosseno
e seno. O professor hoje só falou em seno, percebeste agora, ó anormal, ou
tenho de te fazer um desenho?
PROFESSOR – (enquanto escreve
a palavra no quadro) Obsceno. Deixemos a matemática para quem a ensina. A
Marta estava distraída. Precisa de estar mais atenta e ter mais respeito pelos
colegas.
MARTA – Ok. Continue.
PROFESSOR – Uma vez que os ânimos acalmaram, vamos começar a aula
prevista para hoje. Referi logo no início que abordaríamos as orações
subordinadas adverbiais finais (regista
no quadro enquanto fala. Madalena
sorri mas remete-se ao silêncio. Estava ocupada a mandar e receber mensagens no
telemóvel). O melhor que temos a fazer é partir de um exemplo. (regista e soletra) Prepara-te para ficares bem na
fotografia. Nesta frase encontramos dois verbos, logo duas orações.
JOÃO – O professor também é fotógrafo?
PROFESSOR – Gosto da fotografia, mas nunca me passou pela cabeça
fazer vida da fotografia.
JOÃO – Então?! Está dizer à Marta para se preparar se quer ficar
bem na fotografia. Desvie a máquina de mim. Para me tirar fotografias tem que
pagar direitos de imagem.
PROFESSOR – Alguém falou em tirar fotografias? Esta frase é apenas
um exemplo em que aparece uma oração final.
CIDÁLIA – Podia ter escolhido um exemplo melhor.
PROFESSOR – Queres ser tu a escolher?
CIDÁLIA – Posso, curtia bué. Então registe aí: Nunca mais chega o fim do ano.
PROFESSOR – Mas!... Onde está a oração final?
CIDÁLIA – No fim do ano. Se o senhor professor conhecesse a minha
avó, veria que ela usa orações finais e iniciais. Curo ouvi-la no último dia do
ano a agradecer a todos os anjos e santos que conhece o que aconteceu no ano
que acaba. Olhe que conhece muitos. Ela vai buscar nomes que não lembrariam ao
diabo.
PROFESSOR – A tua avó deve ser muito religiosa. Respeito as
devoções dela, mas…
CIDÁLIA – Faz a mesma ladainha no dia de Ano Novo. Aqui é diferente
do habitual nela: pede a todos os anjos e santos que lhe deem um ano tranquilo.
PROFESSOR – Faz muito bem, mas deixemo-la com as suas devoções e
vamos ao que nos interessa. Quero que fixes esta regra: na fase há tantas orações
quantos os verbos. Olhando para a tua frase, só encontramos um verbo. Neste
caso chamamos-lhe frase simples.
CIDÁLIA – Para quê ser complicada?
PROFESSOR - (espantado com
tamanha ignorância) Complicada?! Existem as frases simples e as frases
complexas. Estes conceitos dão-se por adquiridos desde o segundo ciclo. Rapazes
e raparigas do secundário estarem ainda sem saber isso é inacreditável.
MARTA – Os professores são engraçados. Partem sempre do princípio
que os dos anos anteriores falaram nos assuntos. É um pressuposto errado.
PROFESSOR - Como eu conheço
esse argumento! Quantas vezes se voltaram para mim a jurar que nunca ouviram
falar de um assunto quando fui eu próprio a abordá-lo numa das aulas anteriores
ou, mais raramente, em anos anteriores?
CIDÁLIA – Mas também é verdade que o senhor professor reconheceu
muitas vezes que podia estar enganado e ter falado num assunto noutra turma e
pensar que o fizera na nossa.
PROFESSOR – A razão é muito simples. Se penso abordar o mesmo tema
em turmas diferentes e acontece o que está a acontecer nesta aula…
MADALENA – Só sabemos que quer falar de orações finais, mas falta
explicar do que se trata. Deixou claro que nada tem a ver com mortos nem coisas
relacionadas com a religião. Então essas orações finais são o quê?
CIDÁLIA – São as que coincidem com o fim do ano, qual é a dúvida?
PROFESSOR – Nada disso. São as que indicam a finalidade ou objetivo
de algum comportamento ou ação.
ZÉ CARLOS – (com ar vitorioso).
Até estou vaidoso comigo. Fui o primeiro a perceber esta matéria. (voltando-se expressamente para o professor)
Posso explicar à turma?
PROFESSOR – Faça favor. Talvez os seus colegas entendam melhor a
sua linguagem do que a minha.
RUFINO – Bô! O Zé Carlos é que vai desempenhar o papel de
professor? Ainda se ao menos fosse a Madalena! Ela foi o quê o ano passado?
MADALENA – Catequista.
RUFINO – Isso: carro de pista.
MADALENA – Catequista.
RUFINO – Ou isso. É a mesma coisa.
ZÉ CARLOS – Deixais-me falar ou quê? Uma oração final é um relógio
digital.
PROFESSOR – (espantado,
impaciente, sem saber bem como reagir) O que acabo de ouvir é tão bizarro
que fico…
ZÉ CARLOS – Vamos ver se entendem o que acabam de ouvir. O senhor
professor falou em objetivo ou finalidade das nossas ações. O meu objetivo ao
poupar as semanadas é comprar um relógio digital da última geração.
PROFESSOR – Se guardarem silêncio por uns momentos, aproveito o
exemplo do Zé Carlos e registo uma frase no quadro onde apareça uma oração
final.
MARTA – (aos berros)
Deixai falar o professor.
PROFESSOR – (escreve no
quadro e lê) O Zé Carlos está a
poupar para comprar um relógio digital. Aqui temos então uma oração final
que salta à vista.
JOÃO – Cuidado com os óculos.
PROFESSOR – Cuidado com os óculos porquê?
JOÃO – Se salta alguma coisa à vista pode partir as lentes.
PROFESSOR – Nada disso! A oração final é «que salta à vista».
ZÉ CARLOS – Quem me dera! Ainda me falta mais de metade do
dinheiro. Só depois é que lhe ponho a vista em cima.
PROFESSOR – Estamos a falar de coisas diferentes: eu falo da frase
enquanto segmento gramatical passível de ser analisado; tu falas-me do relógio
digital que desejas comprar e para o qual estás a poupar dinheiro.
ZÉ CARLOS – Que acha? É um objetivo importante. Sabe, senhor
professor, quando lutamos para conseguir alguma coisa, custa menos a aceitar as
dificuldades. Eu vou ser muito franco consigo. O dinheiro que estou a poupar
faz parte das minhas semanadas. Antes de decidir que havia de fazer esta compra
com o meu dinheiro, gastava-o todo e ainda me sobravam dias. A partir do
momento em que optei por prescindir de alguns prazeres mais imediatos como o
tabaco e umas «bjecas», continuo a
ser o mesmo Zé Carlos, mas com mais dinheiro na carteira.
PROFESSOR – Gosto de te ouvir essas coisas e é pena ter que deixar
esse tema sem te dar tempo a exprimires tudo o que te vai na alma a propósito
deste objetivo que queres atingir. Vou lançar-te um desafio: isso que acabas de
partilhar comigo e com a turma tradu-lo agora numa frase da tua autoria em que
uses dois verbos.
MARTA – Queres que eu ajude?
ZÉ CARLOS – É melhor.
MARTA – A frase poderia ficar: O
Zé Carlos deixou de fumar porque é um betinho.
PROFESSOR – Marta, fico admirado com o teor da tua intervenção.
Consegues o feito inédito de tratar mal o colega e propor uma frase que nada
tem a ver com as orações subordinadas adverbiais finais. A oração subordinada
que aparece nessa frase é uma causal.
JOÃO – (em tom conciliatório).
É a mesma coisa: uma causa leva a uma consequência ou fim.
PROFESSOR – Essas discussões podem ser úteis e produtivas nas aulas
de Filosofia. Tem a ver com o fundamento das coisas. Nós aqui somos muito mais
triviais e tão rápido estamos a falar de qualquer coisas que descobrimos num
jornal, como logo a seguir estamos a discutir o sexo dos anjos.
MADALENA – O senhor professor acredita em anjos? Recordo-me que
quando era miúda, ouvia muitas vezes essa palavra da minha mãe e da minha avó
para se referirem a mim. Agora? É ouvi-las a acusar-me de ser a pior criatura
que Deus colocou à face da terra.
PROFESSOR – Que exagero!!!
MADALENA – Isso é o que o senhor pensa. Ainda ontem à noite, só
porque cheguei a casa atrasada, estava a ver que ainda me chegavam a roupa ao
pelo.
PROFESSOR – A uma menina da tua idade?!
MADALENA – Até parece que é a primeira vez. Ultimamente tem sido
por causa das queixas do professores?
PROFESSOR – Como?! Dos professores?!
MADALENA – Da DT. Cada vez que chama a minha mãe à escola, fico
logo a tremer porque há sempre queixas a apresentar a meu respeito. É fatal
como o destino.
PROFESSOR – Da minha parte…
JOÃO – Quem o ouvir há de pensar que é melhor do que os outros.
Desculpa-me se eu…
PROFESSOR – As pessoas são livres de pensarem o que quiserem. Achas
que é mesmo necessário aproveitar este momento para manifestar a tua opinião?
JOÃO – Era só para que a Madalena percebesse que é difícil ou mesmo
impossível encontrar um professor que nos compreenda. Mesmo aqueles que
julgamos muito amigos…
PROFESSOR – Essa conversa levava-nos demasiado longe. Os alunos
podem ter alguns motivos de queixa dos professor, mas se os professores
escrevessem as suas memórias sem rede…
ZÉ CARLOS – Nunca vi ninguém escrever nas redes.
MARTA – Sabes o que são redes sociais? És tão burro!
ZÉ CARLOS – Até sei o que são outras redes. De engate, de droga, de
roubo… há tantas.
PROFESSOR – Tens razão, mas quando eu falei em escrever sem rede
estava a referir-me a meias palavras, constrangimentos. Para mim como para vós,
há verdades que convém calar porque iam dar origem a mais problemas do que
soluções. Ao longo da minha carreira já tive que ver, ouvir e calar muitas
vezes.
RUFINO – É a melhor forma de mais tarde olhar para traz e concluir
que o seu silêncio evitou engrossar o barulho de alguém.
PROFESSOR – Como?!
RUFINO – Sim, se o senhor professor berrasse com alguém para que se
calasse, o mais provável era que a pessoa aumentasse o volume do som para se
sobrepor aos seus gritos.
PROFESSOR – Pensando bem, tens razão. O barulho combate-se com o
silêncio. Mas deixemo-nos disto. Onde viemos parar quando o meu propósito era
falar de orações subordinadas finais.
MARGARIDA – A minha avó é que tem razão quando refere que as
conversas são como as cerejas: puxa-se uma e vêm outras agarradas a essa.
PROFESSOR – Ela tem um saber feito de muita experiência e, como tal
correto, lapidar e certeiro. É a vantagem de ter idade.
MARGARIDA – Está enganado. É mais nova do que o senhor professor.
Que idade acha que tem?
PROFESSOR – Sessenta ou setenta anos.
MARGARIDA – Menos, muito menos. Vai fazer cinquenta em outubro.
PROFESSOR – Onde vão os meus cinquenta!... Mas então?...
MARGARIDA – Foi mãe aos dezassete anos e minha mãe teve-me aos
vinte e dois.
PROFESSOR – Fazendo as contas… dezassete mais vinte e dois faz
trinta e nove. Tu tens…
MARGARIDA – Vou fazer dezasseis.
PROFESSOR – Estás enganada sobre a idade da tua avó ou a matemática
deixou de ser o que era.
MARGARIDA – Estou a falar da minha avó paterna. Quando eu nasci, o
meu pai tinha dezassete anos.
PROFESSOR – Foi precipitação minha ao achar que me estavas a falar
da avó materna.
JOÃO – (acutilante) Que
temos nós a ver com a avó da Margarida? Conheço-a e não merece que estejamos a
gastar o nosso latim com ela. Consegue ser mais chata do que… (ia citar o professor, mas parou bruscamente).
PROFESSOR – Aproveitamos a reprimenda do João e voltamos a falar
daquelas orações que traduzem a ideia de finalidade ou objetivo. (apontando para o quadro onde continua
escrita a frase: O Zé Carlos está a
poupar para comprar um relógio digital) Temos no quadro a frase complexa
quem contém uma oração subordinada adverbial final. Esta frase começa com a
palavra «para». É a conjunção mais
frequente para este tipo de orações. Alguém seria capaz de apontar outra frase
em que apareça a conjunção «para» a
fazer a ligação entre uma oração subordinante e uma oração subordinada
adverbial final?
MARTA – Acho que sei. Posso tentar?
PROFESSOR – Faça favor. Finalmente temos a Marta igual a si
própria. Força!
MARTA – Então é assim: Quero
ir para a rua.
PROFESSOR – Continue. Está a ir bem, embora eu penso que isso é uma
mentira.
MARTA – Que quero ir para a rua?! É verdade, verdadinha e a frase
está completa. Tem a palavra «para»
como pediu.
PROFESSOR – As orações finais só aparecem em frases com dois ou
mais verbos em tempos finitos. A tua apresenta realmente dois verbos, mas o
verbo «ir» está no infinitivo
impessoal. Além disso a palavra «para»,
neste contexto é uma preposição.
JOÃO – (aparte) Outra vez
Os
Lusíadas?! É vira o disco e toca o mesmo.
MARTA – Tenho que alterar tudo?
PROFESSOR – Dois verbos, conjunção «para»…
MARTA - Então a frase vai ficar assim: Adoro as suas aulas, mas quero ir para a rua.
PROFESSOR – Obrigado pela parte que me toca. Na verdade temos os
dois verbos, só falta usar a conjunção em vez da preposição.
JOÃO – (pondo-se em pé e
falando sem pedir autorização) Alguém me explica para que estamos com esta
conversa toda?
PROFESSOR – Bravo, João. Aí temos um excelente exemplo do que é…
JOÃO – (aparte) …estar a
encher chouriços.
PROFESSOR – (depois de olhar
raivosamente para o aluno) Vou repetir: temos aqui um exemplo paradigmático
do que é uma oração final. (regista no
quadro e soletra) «… para que estamos com esta conversa toda».
JOÃO – Com esta resposta, acha que mereço positiva no final do
período? Consegui dar um exemplo enigmático...
PROFESSOR – Paradigmático. Enigmático seria outra coisa.
JOÃO – Tudo bem, mas saiu-me melhor do que todas as que foram
propostas antes.
PROFESSOR - Sem dúvida, mas também sem intenção. O que pretendias
com esta frase era pôr em causa a utilidade da aula.
JOÃO – O senhor professor consegue ler os nossos pensamentos? É que
acertou em cheio. Até lhe vou acrescentar um dado que ajuda a compreender o que
me vai na alma: acho que se esqueceu de preparar esta aula e tem estado a… (suspende a frase e faz um gesto com os
lábios a reprimir-se).
PROFESSOR – Podes concluir a frase. Vivemos num país onde existe
liberdade de opinião.
JOÃO – Eu sei, mas prefiro calar-me até porque… (passa a escrever apressadamente no telemóvel)
MARTA – Até porque quê?
JOÃO – (dirigindo-se apenas à
Marta) Deixa-me em paz. Estou a responder a uma mensagem.
MARTA – Ok. Queres que eu termine a frase com o que te ouvi há
pouco?
JOÃO – (empurrando o
telemóvel para o canto da mesa com algum enfado) … tem estado a encher chouriços.
MARTA – (incomodada com o
gesto do colega, pergunta ao ouvido) Aconteceu alguma coisa grave?
JOÃO – (dobrando-se sobre a
mesa e aproximando a boca do ouvido da colega) Depois conto.
PROFESSOR – Conheço muito bem essa expressão idiomática e sei que
tem caráter ofensivo quase sempre e mais ainda neste contexto (indicando com a mão toda a turma e repetindo
o gesto para que ninguém se julgasse excluído daquela generalização). Vir
alguém acusar-me de estar a perder tempo quando me obrigam a repetir as mesmas
coisas tantas vezes por estarem distraídos é uma dupla falta de respeito: por
mim e pelo esforço hercúleo que faço para que entre qualquer coisa em cabeças
que se recusam a aprender; por quem vos paga para estardes aqui no pressuposto
que estais a aproveitar a oportunidade para aprenderdes uma profissão de nível
IV. Como eu vos entendo! Há uma mão escondida que vos quer ver ignorantes para
vos manter submissos e vós colocais-vos a jeito. Acontece isso com o João que
teve a coragem de deixar sair o que lhe vai na alma, mas ele é a voz de todos.
RUFINO – Ele fala por ele. Eu estou aqui para aprender. Pode ser
num ritmo mais lento que o senhor professor gostaria, mas tenho objetivos e
quero alcançá-los.
MARTA – Eu também.
MADALENA – Eu suporto tudo porque me obrigam a isso. Se fosse por
mim…
PROFESSOR - Ninguém aprende por imposição. Atrevo-me mesmo a
concluir que o verbo aprender é um daqueles em que o imperativo faz pouco ou
nenhum sentido.
CIDÁLIA – Acha mesmo isso?! Então porque insiste tanto? Até parece
que nos está a obrigar a aprender como se todos tivéssemos o mesmo ritmo. Somos
todos iguais e todos diferentes.
PROFESSOR – Convenhamos que sim, mas ninguém está dispensado de
querer o melhor para si próprio. Acham que o caminho que estão a seguir vos
pode levar a um futuro tranquilo? Toda a minha preocupação é dotar-vos das
ferramentas necessárias para serdes cidadãos responsáveis numa sociedade cada
vez mais exigente.
RUFINO – Acredito que seja essa a preocupação do professor, mas tem
que perceber que a vida é muito mais simples e mais bela do que aparece nos
livros.
PROFESSOR – Explica bem isso. Quem sabe se até concordo contigo?
RUFINO – A vida de qualquer trabalhador resume-se a fazer as
tarefas que lhe estão destinadas com eficácia e perfeição para garantir um
salário que lhe permita viver dignamente ele e a sua família. Essa é a vida
real. Aquilo a que assistimos na escola é radicalmente diferente: cada
professor acha que a matéria que ensina é que vai salvar o planeta.
PROFESSOR – Exagero. Isso é um exagero.
RUFINO – Também acho. O senhor professor acha que há colegas seus
que revelam alguma falta de sentido prático e…
PROFESSOR – Acho que estás a ser injusto nessa apreciação. Eu, como
todos os meus colegas, estou inserido na sociedade e percebo que a educação é
uma ferramenta indispensável para se vencer na vida. É esse o meu quadro de
referência.
ZÉ CARLOS – Concordo totalmente consigo. O senhor professor é fixe
e compreende-nos, mas há outros stores
que acham que temos que saber tanto como eles. Eu vou explicar-lhe o pensamento
do Rufino com o caso concreto da Matemática. Quando eu for jogador de futebol…
(gargalhada geral)
PROFESSOR – Vamos ouvir o Zé Carlos. Estava a tentar demonstrar que
a Matemática podia ser mais prática, menos exigente, em suma, aplicada à
realidade.
ZÉ CARLOS – Sim, era isso que estava a pedir porque quando eu for
jogador de futebol só preciso de saber quanto vou ganhar e quanto acho que
devia ganhar. Quando a Marta for cabeleireira…
MARTA – Cabeleireira?! Onde foste buscar essa ideia?
ZÉ CARLOS – São apenas exemplos. Quando tu fores cabeleireira só
precisas de saber quanto levas por cada serviço e quanto te custam os produtos
que usas.
MARTA – (numa atitude de
desprezo) E ele a dar-lhe!
MADALENA – Deixa lá, Marta. Ele também só vai ser jogador de
futebol quando tu fores cabeleireira.
MARTA – Quando as galinhas tiverem dentes.
JOÃO – Continuamos a falar de tudo menos daquilo que interessa. O
professor anuncia que vai falar de funerais e acaba por andar tão longe disso
como o Zé Carlos da carreira de futebolista.
PROFESSOR – De funerais?! Onde foste buscar essa ideia mirabolante.
Orações finais, foi o que registámos no sumário.
JOÃO – Peço desculpa. Só ouvi a última sílaba. Depois a Madalena
falou em…
MADALENA – Catequese.
JOÃO – Isso. E em mortos e outras coisas que só tu sabes.
PROFESSOR – Só ela?! Também sei do que se trata. Isso é diferente
de ser o que nos ocupa nesta aula.
JOÃO - Ela lá sabe do que se trata, mas pouco interessa para o
caso, agora… (encolhe os ombros e gesticula para traduzir a inutilidade de tudo
o que está a ouvir)
PROFESSOR – Chega. Vamos regressar à frase que está no quadro. (aponta para a parte sublinhada da frase:
«… para
que estamos com esta conversa toda».)
JOÃO – (esboça um sorriso sarcástico) A minha questão continua a
ser essa: afinal estamos com esta conversa toda para quê? Alguém me sabe
explicar?
MARTA – Queres mesmo saber? Porque és tão burro como os outros. Se
deixasses o professor explicar, compreendias e avançávamos. Percebeste agora,
meu camelo.
JOÃO – Camelo?! Alto aí. Tenho duas bolsas…
MARTA – Duas bossas? (gargalhada geral)
JOÃO – Duas bolsas. Queres vê-las (prepara-se para desapertar as
calças).
PROFESSOR – Tenham calma e respeito uns pelos outros. Se continuam
assim, é impossível avançar e posso garantir que esta matéria consta no próximo
teste. E se bem me lembro até são duas perguntas: uma para dividir e
classificar orações e outra para completar uma frase com uma oração final.
MADALENA – É só acrescentar a palavra Ámen. É assim que terminam grande parte das orações.
RUFINO – O que tu sabes!... Também quero ser…
MADALENA – Catequista?! (traduzindo
espanto com tamanha insensatez) Tu?! Se nem sabes o que isso é… Tu queres é
ser um presidiário ou…
RUFINO – Um quê?! Um caderno diário?! Estás muito enganada. Nem
tenho caderno há muitos anos nem escrevi diários nunca. Isso é para meninas snobs como tu.
PROFESSOR – Tenham calma. As aulas podem ter animação, mas sem
ultrapassar as linhas da boa educação. Quando acontece algum excesso, depois é
difícil travá-lo. É como uma roda que se largue no alto de uma colina e segue
descontrolada por ela abaixo. Mais importante do que segurá-la quando ganha
velocidade é evitar que ela se ponha em movimento. Acabou essa discussão. Vamos
ao que interessa.
CIDÁLIA – Finalmente! Pensei que
chegávamos ao final da aula sem ter aprendido nada que se aproveitasse.
ZÉ CARLOS – Aprendi uma coisa que me vai ser útil para a vida. Foi
ensinada sem intenção nem convicção, mas gostei de ouvir que a vida é uma roda.
PROFESSOR – (surpreendido com
aquela convicção) Como?! Onde foste buscar essa conclusão?
ZÉ CARLOS – (ofendido com a pergunta) Porquê? Consigo ler as
entrelinhas e até acrescentaria: faço-o com mais facilidade do que leio Os
Lusíadas ou outras obras que nos obrigam a ler. Sabe porquê? Curto bué
a vida e sei que tem sempre um lado bom que muitos teimam em esconder.
PROFESSOR – Sou obrigado a concordar em parte contigo. E quem me
garante que eu faço parte desse lado bom da vida? Sim, porque uma roda pode ser
sinal de movimento para o bem ou para o mal. Como eu gostaria que fizesse parte
das rodas que nos conduzem à felicidade.
CIDÁLIA – O professor pode ter as melhores intenções, mas os tiques
são comuns a todos os seus colegas. Se quiser ouvir a minha opinião, tenho que
ser clara: nós é que somos estes galfarros que giramos à sua roda e, por mais
que seja incompreensível, aprendemos mais no trato consigo do que em todas as
tentativas que faça para nos encher a cabeças com obras literárias, gramática
ou lições de moral.
PROFESSOR – Obrigado por essas palavras elogiosas, mas gostaria que
percebesses… percebessem que há conteúdos que tenho que ensinar.
CIDÁLIA – Sem dúvida, mas passam-nos ao lado. O que fica é marca
que grava em nós com o respeito pelo diferente, com a paciência para nos
aceitar como somos. Quer que traduza tudo isto com três palavras?
PROFESSOR – Se achares oportuno,…
MADALENA - Ser nosso amigo.
CIDÁLIA – E lembre-se que ser amigo é muito diferente de andar a
dar-nos palmadinhas nas costas. O professor nunca o fez e dispensamo-las porque
há toda uma energia que transmite pelo que é e pelo que representa para nós.
Nunca tivemos oportunidade de lhe manifestar isto, mas é o sentimento geral da
turma.
PROFESSOR – Fico sem palavras. É bom saber que aqueles que levam os
nossos nervos ao limite nos medem em tudo o que somos e fazemos e aproveitam o
que há de bom na nossa atitude perante a vida e isso impõe-me uma obrigação
acrescida de transmitir a alegria de viver e principalmente conviver.
ZÉ CARLOS – O convívio também é uma forma de aprender. Nós
aprendemos uns com os outros e naturalmente com os mais velhos. Ao partilharmos
os nossos sucessos e os nossos fracassos estamos a querer que os outros
repliquem aquilo que fizemos e sintam o mesmo prazer de vencer ou evitem cair
nos mesmos erros porque se aquele caminho falhou connosco, é provável que falhe
com os outros.
PROFESSOR – Até parece que hoje o aluno sou eu, porque estou a
descobrir que há em cada um uma caixinha de surpresas. Boas, por sinal!
RUFINO – Quando nos conhecer melhor, ainda vai ficar mais bem
impressionado porque somos melhores do que aparentamos.
PROFESSOR – Lá se vai o plano desta aula.
MARTA – Conseguiu um objetivo… (duvidando
se essa palavra era a melhor ou se a devia corrigir) … ou foi uma
finalidade? Conseguiu perceber que todos nós lutamos para vencermos na vida.
PROFESSOR – (repetindo
pausadamente as palavras da aluna) «… para vencermos na vida». Que bela
oração final! Hei de reconhecer que a aula sobre orações podia acabar desta
forma, mas deixai que faça um comentário ao momento que acabámos de viver: Está
enganado quem acha que os alunos só crescem com base nos elogios. Se eu que vos
repreendo tantas vezes represento alguma coisa para vós, então é porque há em
cada um tal sentido de justiça que vos leva a considerar que uma repreensão ou
castigo oportuno é aceite com a mesma naturalidade de um elogio.
MARTA – Naturalmente que sim.
PROFESSOR – Com a minha idade, pouco posso mudar, mas prometo que
vou continuar a tratar-vos como pessoas de bem e como se tivésseis a minha
idade, mesmo sabendo que há uma diferença de duas gerações entre nós.
RUFINO – Isso é inovador e dará os seus frutos pois há quem olhe
para nós e nos acuse de sermos preguiçosos, arrogantes, provocadores… Enfim, de
sermos novos, como se isso fosse defeito grave de que tivéssemos culpa…
PROFESSOR – É verdade que tendes o defeito de ser novos, mas
prefiro ver isso pelo lado bom: trata-se de um defeito que passa com o tempo.
Que grande escola é a vida!
Júlio Rocha (25/4/2025)
😀😀😀 Que engraçado.
ResponderEliminarEstá peça faz me lembrar a minha turma quando estudamos os Lusíadas de Camões.
Como é possível tanta aproximação á realidade
.
Parabéns.