DONOS DAS GRUTAS
Anda o homem toda a vida,
Seja às claras ou às escuras,
Tentando em certa medida
Guindar-se para as alturas.
- Acorda, Vanda, está na hora de irmos comer qualquer coisa implorou o Arnaldo entre afagos. – Anda, mulher. Com o teu prestígio, ninguém
te perdoaria a ausência por muito lógicas que te soassem as razões invocadas.
- Ora dorme e deixa-me em paz! Ainda tenho muito sono. Quem
tem trabalho que o faça!
- Como te havia de deixar? Lembra-te que hoje é a grande
noite...
- Noite de lua cheia? Gosto da lua cheia e do sangue quente
que me fica mais acessível nestas circunstâncias.
- Hoje há outras razões que a tornam diferente e memorável.
Esqueceste-te? É o Congresso dos Noctívagos Alados, presidido pelo Grão-mestre
Rasgo D׳Asa, que termina o seu mandato e está indisponível para continuar à
frente dos destinos da legião e, como tal manifestou a sua indisponibilidade
para uma reeleição, o que significa que vai haver eleições para o lugar de grão-mestre.
Momento alto da noite como acontece cada sete anos.
- Deixa-me em
paz. Cada vez acho menos piada a essas confusões. Quem são os
candidatos?
- Gostava de responder com clareza a essa questão que soa a
simples e é de uma dificuldade extrema. Vê lá tu que nem o mais pequeno comício
foi feito para divulgar os grandes planos que têm em carteira. Era uma
boa oportunidade para conhecermos as diversas equipas com sede de protagonismo.
Nada!
- Fico confusa com tanto secretismo.
- Também eu, mas descansa que para lugares associados a
mordomias aparecem sempre pretendentes. Os conselheiros andaram muito por aqui.
- Então e tu, meu querido Arnaldo, Vampiro, serás o
candidato dos quirópteros ou preferes ficar eternamente do lado dos
contestatários sem descerem ao terreno e sujarem as mãos a resolver os
problemas coletivos. Sim, porque boas ideias tens tu em carteira, mas se a
conjuntura for desfavorável para as pôr no terreno, acabam por criar teias de
aranha e depois ninguém se sente empolgado com elas.
- Conheces receitas para chegar ao poder? Sussurram-me os
deuses do mundo alado que há de chegar a minha hora de ser o mestre dos manes,
mas sem me garantir nada sobre a atualidade. Tenho de cultivar a ponderação.
Precipitar acontecimentos, nos momentos em que estão em jogo os altos
interesses sociais, seria fraca receita.
- És uma caixinha de surpresas. É bom. Fico feliz por saber
que um dia queres ser tão mestre como os melhores que nos governaram. Vamos
espreitar a oportunidade e em conjunto havemos de descobrir a forma e o momento
de lançar a candidatura do meu Arnaldo, ainda que para tanto seja necessário
cuidar da imagem.
- Hoje aproveito a oportunidade para os primeiros contactos
e quem sabe, para… Remeto-me ao silêncio porque estava a delirar. Acompanhas-me?
- A pergunta é desnecessária. Nos bons e nos maus momentos,
conta comigo, mas olha que tenho muito sono. Precisava de estender as asas para
recuperar o vigor necessário nas horas de confronto.
O Arnaldo sabia o que tinha em casa. Era melhor dar-lhe
essa oportunidade do que aguentá-la horas a fio a bocejar, lamentar a hora,
convidá-lo a abandonar a assembleia antes do ponto mais alto e, pior do que
tudo, a fingir que o desconhecia durante uns dias por a obrigar a passar por
grande vergonha na presença da sua corte de admiradoras. Pois que desejava
espairecer, sairiam e até aproveitariam para procurar qualquer animal em que
pudessem ferrar os dentes.
Na saída a Vanda foi contra uma coluna de pedra miúda
carcomida pelo tempo empurrada pelos rodopios que aconteciam na gruta em cada
final de tarde. A dor sentida originou um grito agudo de dor e revolta que
sobressaltou a noite.
- São Gregório dos vampiros!... Falharam-te os sensores? –
advertiu-a o companheiro que de todos os ataques se defendia como quem conhece
em pormenor toda a táctica do adversário.
- Tomaste-me a brincar quando me queixei que tinha sono. Os
reflexos ficam extraordinariamente limitados numa situação de apuro.
A Vanda sacode a sua asa e enrosca–se de seguida por
completo, tentando disfarçar a sua má sorte à vista dos olhares dos
noctâmbulos.
- Arnaldo, posso sair?
- Sim. Tudo calmo.
Iludida a dor, saem à procura de alimento. Tudo o mais que
pudesse acontecer naquela noite estava em segundo plano face às necessidades
vitais. Olham para a noite e acham-na bonita. Convidava à aventura e ao
devaneio.
- Vamos voar até à lua, Vanda?
- Que proposta tão oportuna! Veio na melhor altura,
Arnaldo. Acabada de voltar a mim, após um período de dormência, acompanho-te
nem que seja até ao inferno. Nesta noite o importante é estar na tua companhia
para o bem ou para o mal.
Subiram, subiram, subiram. A distância em relação ao ponto
de partida era cada vez maior, mas continuava a parecer a mesma face ao ponto
de chegada.
- Ainda está tão longe... – lamentou-se a Vanda que
abandonara os treinos ia lá um mês dos grandes. – Quando se vai para velho,
começam a faltar as forças e é o diabo.
- Sinto-me mais atraído pela terra. Parece que nasci para
cumprir ali um desígnio que me tem fugido. É melhor descermos.
Fecharam as asas e baixaram em queda livre, como se
estivessem a treinar qualquer acrobacia do paraquedismo. Quando se aproximavam
do chão, abriram-nas e reiniciaram o voo. Começaram a fazer piruetas com
choques sensuais em pleno voo, pareciam dois adolescentes fora da vigilância
dos pais. Riam-se e fruíam de uma bela noite de lua cheia.
Ficaram cada vez mais sozinhos com espaço e tempo para
refletir sobre as razões que os tinham tirado do seu abrigo. Tinham
necessidade de garantir uma refeição pródiga que lhes restabelecesse as
energias perdidas na aventura de chegar à lua e os preparasse para as próximas
provações. Ocupavam-se eles destas pueris razões que os humanos muito prezam
quando se aperceberam da facilidade de uma possível refeição. Um burro pachorrento
dormitava na cerca junto ao celeiro, certo que ali poderia sentir-se seguro
tamanha a altura dos muros e do portão.
- E se nós fôssemos ali buscar uma refeição? Nem sempre nos
são oferecidas semelhantes benesses.
- Boa, boa...
- Será que ele tem consciência da sua condição?
- Detestava ser burro, nem sequer por um segundo –
asseverou o Arnaldo.
- Frequentemente as criaturas conformam-se com a sua
condição e até agradecem a generosidade do criador porque as fez sem defeito.
- Quem nos garante que se o burro tivesse consciência da
sua condição iria gostar?
- Como é burro...
Pousaram no território que fazia com que o jumento se
sentisse feliz, a uma distância de segurança. Aproximaram-se com muito cuidado,
como sempre faziam quando os ataques eram planeados em conjunto, deitaram uma
cheiradela seguida de uma lambedela a uma das patas traseiras e com os dentes
mais afiados do que agulha de albardeiro abriram um pequeno golpe. Começou a
jorrar sangue que eles bebiam sofregamente. A arrotar da abundância com que se
banqueteara, Vanda interrompe o festim, palita os dentes e volta-se para o
marido lamentando o que lhes coubera em sorte:
- Acho este sangue demasiado simples, indolente, pachorrento,
bonacheirão e pouco nutritivo. Falta-lhe qualquer coisa que o torne atraente.
- Estava a pensar nisso. E até diria mais: tenho medo que
também nós fiquemos assim diminuídos, muito comuns e logo numa noite como esta
em que precisamos de estar em forma. Desconhecemos o que nos espera.
- O melhor era irmos à procura de outra coisa que nos
levantasse o ego. Se faltarem outras alternativas e a fome aparecer pela
madrugada, sabemos que aqui pelos menos é à fartazana.
Levantaram voo, as piruetas sucediam-se precedidas de voo
plano. Uma nuvem começa a tapar a lua e o luar a esvanecer-se. Por momentos
tudo escuro como breu.
- O Grão-mestre está a aproximar-se, sente-se magia a
transbordar na tenebrosidade da noite.
- Pelo patrono dos vampiros, temos de nos despachar quanto
antes.
- Estou a sentir um corpo quente, Vanda – murmurava o
Arnaldo.
- Sim e um rosnar cada vez mais intenso... para este lado -
a Vanda apontava para uma casa com luz a sair por uma das janelas.
Lá estava, no vão das escadas um cão que descansava da
jornada que fizera com o dono.
- Ah! É ali, um cão bem nutrido, sólido e viçoso. O sangue
dele deve estar uma delícia - acrescentava
o Arnaldo.
- Vamos a ele.
- Cuidado, pode acordar e seria muito mau. Se nos deita os
dentes, desfaz-nos.
- Proponho que pousemos e nos aproximemos dele pela
retaguarda.
- E mordemo-lo no pescoço.
Assim fizeram.
- Este sangue tem mais vigor, mais alento, espírito e
frescura do que o do burro, mas estou a ficar com remorsos com dose de
arrependimento - comentava o Arnaldo.
- Sinto ansiedade e agonia. Há tempos, era diferente. Tudo
me prestava, mas agora parece que tudo me cheira a traição. Ainda bem que tu
estás aqui, Arnaldo, doutra forma duvidaria da nossa fidelidade.
- É o choque entre o nosso sangue e o do amigo fiel do
homem. Só nos traz desgostos e amargura, é um mau presságio para uma noite como
esta.
- Larga já. Temos de procurar outro, rápido.
Levantam voo num pulo. A Lua desaparece no nevoeiro
enfurecido e o vento sopra com intensidade levando consigo o som formado pelo
coro dos mochos das corujas e dos noitibós.
- Quem nos vale? Estão a chamar para o Congresso. A noite
vai ser boa, diabólica...
- Negra e ruidosa - acrescentava Vanda. - Olha ali em
baixo! Junto ao candeeiro! Uma alma penada de um humano.
- Onde? Aponta-mo lá. Que está ele a fazer?
- Ali junto ao candeeiro. Ignoro o que faz, mas parece que
está a falar com alguém. É perigoso aproximarmo-nos.
- Nem uma sombra consigo descortinar quanto mais uma pessoa
de carne e osso. Só vejo um candeeiro e uma porta aberta donde sai luz impregnada
de fumo.
- Vem comigo. Aproximemo-nos.
- É
melhor.
- Muito
boa noite senhor! Como vai Vossa Excelência?
Soltou-se
a língua. Como se estivesse na presença do seu semelhante, numa atitude de
prosápia a que por certo estaria habituado, arranca do fundo dos bofes lufadas
de vapores etílicos e um discurso de ameaçador contra o vento, como se fosse a
única preocupação daquele momento.
- Muito obrigado. Muito obrigado. Queira V. Ex.ª. prestar-me
um obséquio, numa noite como esta de arrepiar até aos ossos e com uma ventania
que faz sair os mortos da tumba. Eu, Augusto José, pessoa rica de condição,
tenho obrigação de me opor a esta força eólica e impedir que seja levado pelos
ares sem qualquer destino, nem cama fofa onde possa aterrar. Vossa Excelência
dá-me a honra de me agarrar por alguns instantes a si? Muito obrigado.
- Que
segredou ele? – questionou Vanda. - Esta conversa é música estranha para os nossos
ouvidos.
- Ouvi
mal e desconheço aquela linguagem. Mas vê! Colocou-se numa posição que nos é de
todo favorável, vamos pousar-lhe no ombro.
Sem
pensarem mais, voam os dois na direção desta criatura de testa colada ao poste,
rabo puxado para trás onde esvoaçavam com toda a força as pontas do casaco que
lhe cobria o corpo e na mão, uma garrafa menos de meia.
- A situação pode complicar-se se nos expomos demasiado sem
as devidas cautelas. Tem qualquer coisa na mão e pode apanhar-nos.
- Dessa defendo-me bem. Aquilo que tem na mão é uma
garrafa. Uma vez entrei numa e sei bem o que me custou a livrar-me dela -
recordava o Arnaldo. – Livra!
- Propões o ataque? Por mim…
- Boa! Esperámos tempo demais.
Arnaldo fez-lhe um golpe no pescoço e da cratera aberta
jorrou a sua sobremesa. À terceira tentativa podia acontecer que a abundância
da noite fosse selada com o mais suculento prato.
- Que maravilha! Isto é uma refeição gostosa, nutritiva e
danada. Estou a ficar com a força do Rasgo D׳Asa - comenta o Arnaldo Vampiro,
alucinado, levantando voo e pousando num vaivém interminável.
Vanda ainda mal
tinha começado o seu sustento, levanta a pequena cabeça com orelhas hirtas,
olhos esbugalhados passando a língua a toda a volta da boca, observa o
companheiro calada e sem perceber o que se está a passar. Volta a baixar a
cabeça sobre o pequeno golpe, devagar e pensativa.
- Alto! É impossível!... Arnaldo, para com isso. Chega.
Corremos o risco de fazer figuras tristes, miseráveis, e ser humilhados em público. Precisamos
de moderação. Só necessitamos de nos alimentar e ser quem somos. Vamos embora.
Esperam-nos na gruta.
Vanda sente a presença de algo, levanta voo e segue o seu
companheiro tocando-lhe com a asa cada vez que ele tenta curvar para voltar a
trás.
- Nem penses em voltar. É meia-noite.
Nuvens espessas cobriam a lua. A noite ficou negra e o
vento com grande intensidade levantava o pó dos caminhos e sacudia as folhas
das árvores. Era o sinal escolhido pelo Grão-mestre Rasgo D’Asa para marcar o
início do Congresso dos Noctívagos Alados.
- Estás bem, Arnaldo? – sussurra Vanda, preocupada à
entrada da gruta.
- Sim estou bem. Deixa de preocupar-te. Os vapores etílicos
foram levados pelo vento.
- Vê só quem ali está, o meu primo Capa Negra, mestre da
Furna Grande. Será que ele impressionou os conselheiros e vai ser candidato a
grão-mestre?
- Pode ser. A ver pelos sorrisos e cumprimentos que está a
fazer, tem alguma coisa na manga.
- Vamos entrar? Sorri, sorri, acena com a cabeça, levanta a
asa e cumprimenta.
Arnaldo, atendia sempre ao que a sua amada lhe sugeria,
mas, com a boca entreaberta e os dentes caninos bem evidentes, murmurava:
- Vanda! É impressão minha ou tu tens algo de novo para me
comunicar? De onde surgiram todas estas manifestações de simpatia? Está a
acontecer qualquer coisa que tem a ver comigo. Tu achas que sou um dos
escolhidos pelos conselheiros?
- Tenho a certeza. E vamos conseguir. Juro-to pela minha
honra de filha do Grão-mestre Unhas D׳Albim, desaparecido há um ror de anos.
Arnaldo e Vanda prosseguiam o seu caminho cumprimentando
uns e outros até chegarem ao seu lugar.
Está tudo cheio. A lua começa a brilhar. A sua luz entra
pela fenda do cimo da gruta e está perto do cetro.
O Grão-mestre,
Rasgo D׳Asa, dera início ao seu discurso. Começou por recordar que estava
indisponível para o exercício de qualquer cargo público por razões ligadas à
sua vida particular. Arnaldo e Vanda bebiam cada palavra com o mesmo entusiasmo
com que tinham acabado de se alimentar com o sangue quente das suas vítimas.
Após ter terminado a lista dos sucessos alcançados durante o seu mandato, afastando
bruscamente as largas abas da capa de honras passou de imediato à apresentação
das regras que iriam ditar a escolha do próximo grão-mestre:
- Todos os presentes são convidados a votar. Na contagem
dos votos, para que todos conheçam a evolução dos resultados, será atribuída
uma bola preta por cada mil votos. No final só contarão as bolas. Em caso de
empate, o Grão-mestre cessante tem voto de qualidade. Os candidatos serão os
que, no entender dos meus conselheiros, mais se evidenciaram ao longo da minha
regência. É à luz da lua cheia que neste instante incide sobre o ceptro e lhe
dá vida sobre a forma de uma serpente encantada que passo a divulgar os nomes
dos propostas para esta eleição e os argumentos apresentados pelos respectivos
proponentes. O Raposa Negra, escolhido pela sua audácia, furor, garra, bravura,
esperteza e matreirice; Ataíde, mocho que se destaca pela sua sabedoria, ciência,
sensatez e conduta; por último, temos Arnaldo, o maioral dos vampiros da gruta
oval, pela sua perseverança, filantropia, altruísmo e obstinação.
- Arnaldo, meu querido, foste escolhido – aplaudiu Vanda. –
Estava à espera, mas é sempre uma honra.
- Que hei de acrescentar? Fico incomodado, bem sabes quais os motivos.
- Recorda-os, meu amor?
- Ei-los pois:
Os elogios
e sinecuras
Trazem o fel à mistura.
Que valem palavras belas
Saídas de boca impura?
Ainda trocavam carinhos para celebrar a honra que lhe
estava tão próxima quando se seguiram as felicitações dos congressistas que o
rodeavam, uns porque o apoiavam e outros só para manter a compostura, por ser
politicamente correto agirem dessa forma. Arnaldo foi agradecendo e deixando
claro que seria indiferente à apoteose que o rodeava. O primo de Vanda, Capa
Negra, também cumpriu com as suas obrigações dando apoio ao companheiro de sua
prima.
- Judas! - sussurra Vanda. – Ele ficou remordido de inveja!...
Olha bem para ele.
- Vamos proceder à votação e contagem dos votos – anunciou
o Grão-mestre, Rasgo-d’Asa. - Recordo as regras da contagem: mil votos
significam uma bola preta. Vejo que todos têm na sua posse o boletim de voto.
Preencham-no e coloquem-no nas urnas espalhadas pelo recinto sem atropelos nem
demoras desnecessárias.
Em volta dos candidatos juntaram-se muitos apoiantes.
Alguns retiraram-se para exercer o seu direito de voto em sigilo enquanto
outros quiseram que o candidato se certificasse com os seus próprios olhos que
estavam com ele. Após alguns momentos de tensão, entrou-se no período de contagem
dos votos com os apoiantes a fazerem figas para que ganhasse o seu candidato. A
primeira bola preta que foi atribuída pelos escrutinadores foi para o Ataíde.
Soou um coro de vitória com o Grão-mestre Rasgo d’Asa a pedir serenidade pois
ainda havia muitos votos para serem contados até se chegar ao resultado. A ave
de Minerva esboçando um sorriso a saber a vitória antecipada voltou-se para os
mais eufóricos e implorou silêncio. Obedeceram. A segunda bola coube ao Raposa
Negra. A mesma reação. O grupo de Arnaldo temeu o pior. Soube esperar. O
resultado após a contagem total ditava: três bolas para o Raposa Negra, três
bolas para o Arnaldo e duas bolas para o Ataíde. Cabia ao Grão-mestre a decisão
final. Tomou a palavra para explicar o seu sentido de voto:
- Os excelentíssimos delegados quiseram transferir para mim
a responsabilidade pela escolha final. Os meus conselheiros sabem como votei e
vou manter o sentido de voto. Sem desprimor por todos os presentes e
particularmente pelos outros candidatos, é para mim subida honra poder manifestar
todo o meu apreço à força, determinação e coragem que o Arnaldo demonstrou ao
recusar sangue humano cheio de substâncias alucinógenas. A bola vai direitinha
para ele.
- Ganhámos Arnaldo – anunciou Vanda emocionada. – Sou
esposa de um grão-mestre. Vai receber o que te pertence. Vai, segue sem perder
a compostura.
Com um nó na garganta, Arnaldo dirigiu-se para o centro da
grande sala. O Grão-mestre cessante felicitou-o e logo de seguida entregou-lhe
a capa e o ceptro acompanhado das palavras rituais:
- Recebe este ceptro carregado de energia que te dará
força, magia e determinação para seguires o teu destino sem olhares para trás
pois o mesmo ceptro te indicará o teu caminho.
A emoção abateu-se sobre todo o Congresso dos Noctívagos
Alados. Arnaldo e Vanda agradeceram e saíram pela fenda da gruta grande.
Tombavam raios e ouviam-se trovões. O nevoeiro oculta-os levando-os sem
destino, guiados pelos poderes mágicos da serpente enfeitiçada.
Os perdedores ficam a consolar-se mutuamente. Para isso,
nada melhor do que desdenhar do escolhido. A poesia presta-se a essas coisas e
o mocho bebia nessas fontes a sua quota parte quando queria puxar dos seus
galões.
Amigos e mais amigos
Versados noutro saber
São ameaças, são perigos.
Vá lá o diabo entender! (Ataíde)
O Raposa Negra acenava com a
cabeça em sinal de concordância, mas no seu íntimo estava dividido pela dor de
se ver preterido e pela alegria de ver o mocho de orelha caída.
- Só me considero meio perdedor.
- Como assim?
- As nossas derrotas serão sempre derrotas, mas as dos outros têm
sabor a vitória.
Nos congressos dos alados
As decisões marcam pontos
Ninguém cala os derrotados
Parece um reino de tontos.
Diz-me quem já assistiu
A esses congressos malditos
Que nem acreditou no que viu
Pois tamanhos eram os gritos.
Júlio Rocha (21/2/2025)
Gosto do fantástico. Estes morcegos são especiais. Adorei.
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