CABANA DAS ORQUÍDEAS

São tantos os preconceitos

Ao olhar para o nosso lado

Que temo que tantos eleitos

Vivam em constante pecado.

 

     Era agosto. Como todos os anos, passava mais tempo no quartel dos bombeiros do que junto da família para garantir uma resposta célere a qualquer incêndio que fosse comunicado para o posto como acontecera tão amiudadas vezes nos três dias anteriores. Porém, naquele dia havíamos sido poupados a qualquer comunicação de incêndios que nos mobilizasse. Dava a impressão de que os pirómanos teriam decidido dar-nos tréguas para que pudéssemos celebrar em paz a festa da padroeira. Este e outros pueris pensamentos distraíam-nos do cansaço acumulado e incutiam-nos ânimo para as próximas provas. Porém, seríamos os últimos a alimentar ilusões: com tréguas ou sem elas, o mês de agosto seria trabalhoso.

     Embora organizada em cima da hora, fora combinada uma sardinhada para o meio-dia. Cada um contribuíra com aquilo que lhe dava mais jeito pois o mais importante era a cumplicidade que se instalara no grupo. A iniciativa, a todos os títulos louvável, partira do comandante que, ao passar pela praça achou que as sardinhas estavam tão apetitosas que comprou uma caixa tão cheia que só podiam sobrar para o lanche e jantar. Era tremendo aquele comandante! Tudo lhe servia para incutir ânimo àquele grupo de trabalhadores temporários que, ano após ano, iam ficando mais e mais aptos a proteger os bens alheios da fúria destruidora do fogo. Era assim que ele nos queria: generosos e esclarecidos quando atirados para o terreno. Estava a resultar a sua metodologia.

      Ainda decorria o almoço quando foi dado o primeiro sinal de alarme. A telefonista fez sinal ao comandante que correu para ela como se algum pormenor daquele convívio tivesse sido descuidado. O que foi dito em surdina pude imaginá-lo de imediato: a sirene chamava-nos enfurecida. Num trago engoli o último resto de café, calcei as pesadas botas e, com o fato-macaco apertado pelas mangas à cintura, galguei as escadas como um relâmpago. Como eu, todos os elementos do piquete se dirigiram para os carros que estavam prestes a arrancar. Ninguém queria ser acusado de negligência qualquer que fosse a situação a que íamos acorrer.

        - Despacha-te, Chico - apressava-me o Careca ao volante dum todo-o-terreno com o comandante a seu lado a acabar de palitar os dentes. - O Vale do Estorninho está a arder e lá se vai o Ernesto e o castelo dele.

Castelo?! O Careca chamava castelo a uma cabana onde mal um homem se pode mexer? Sorri enquanto corria para o autotanque ao pé-coxinho para apertar os cordões das botas e acabar de me vestir.

- Almoçaste bem - insinuava cáustico o Ferrugem que nem se apercebera da sardinhada por ter andado ocupado no transporte de doentes.

- Nem por isso. Se houvesse visitas...

- Nem deste de comer à mulher?

        - Só dou nas noites de Lua Cheia.

- Coitada! A fome mata-a de desejo.

Era a nossa vez de sairmos do quartel. As sirenes dos carros tocavam sob o olhar dos transeuntes que se afastavam encolhidos e curiosos para as bermas.

Corríamos para o inimigo. Uma enorme mancha de fumo negro fazia-se notar ainda longe, à nossa esquerda.

- Ó Chico, tu conheces bem este caminho - continuava o Ferrugem. – Sai-te cada trunfo!...

- Como as palmas das minhas mãos. Todas as semanas aqui passo. É a força do hábito.

- Põe-te a pau. Um dia destes a tua mulher ainda se chateia.

- Porque havia de se chatear? Venho em serviço para aqui como para os outros lados

- Serviço, serviço… bem te conhecemos.

- Como?

Se um homem sai de casa
E jura que está em serviço
Ele lá sabe porque se atrasa
Ninguém tem a ver com isso.

- Olha logo quem!...

- Este quer música a estas horas... A minha mulher sabe o que tem em casa. Achas que alguém vinha para aqui para prazer? Pouco tens aprendido pelos maus caminhos.

Gargalhadas lascivas e sarcásticas foram abafadas por mais um toque de sirene a avisar um grupo de populares que abominava impotente a força destruidora do fogo.

      - Quem vem socorrer para estes lados, senhor Francisco? - perguntava o Novato, assim chamado porque vestira a farda pela primeira vez havia pouco mais de quinze dias.

  - Vai buscar o pintor, o Ernesto, que vive numa cabana junto ao riacho amarelo, bem no meio da floresta.

- Então sempre é verdade que vive gente na cabana? Quando era mais novo ouvia falar dessa cabana como sendo um refúgio para as bruxas.

- Quais bruxas?! Dá guarida a um velho que pinta umas coisas. O Ernesto é um pobre diabo que todos rejeitavam e de quem até as crianças faziam troça. Deus foi pouco generoso com ele: deu-lhe uma doença de pele que foi alastrando ao longo dos anos por todo o corpo e o obrigou a retirar-se para aquele tugúrio.

- Lepra? - questionava o Novato.

- Nem tanto. Quando se apercebeu que estava a ser detestado e achincalhado por indivíduos sem escrúpulos que se metiam com ele permanentemente, refugiou-se na cabana. Como tem de fazer o curativo às suas chagas semanalmente, transporto-o com frequência. É um homem muito especial. No final da consulta pede-me para esperar um pouco enquanto vai fazer umas compras. Que hei-de fazer? É a altura em que se abastece para toda a semana. Quando entende, ele próprio dá ordens para seguir viagem.

- Com quem se relaciona um cenobita desses?

- Que eu saiba, para além do pessoal médico, fala comigo, com o dono da mercearia e com o P. Abílio, que lhe expõe os quadros na sacristia da paróquia.

- Compram-lhos?

- Sim. Quem sou eu para avaliar se são bons ou maus ou se têm muito ou pouco interesse? Basta que o P. Abílio apele à generosidade do seu rebanho para que apareçam umas almas caridosas que lhos compram independentemente do seu valor estético.

- O padre também costuma passar por lá?

- Deus te responda. Nunca me encontrei com ele. A única coisa que sei é que pela Páscoa vai visitá-lo. Imagino que no resto do ano raramente se devem ver porque sou eu que lhe trago os quadros e é a mim que o P. Abílio confia o dinheiro para o levar ao Ernesto.

- Tens comissão, Chico – voltou à carga o Ferrugem.

- Deixa-te de brincadeiras com coisas sérias. Queria lá comer o suor do homem?!...

- O Chico é muito boa pessoa, ó Novato?

- É, é. O senhor Francisco José tem medo dele? Que lhe transmita a doença, por exemplo…

- Trata-me por Chico. É assim que me tratam todos os camaradas. Por que havia de ter medo de contágio? A desgraça que bateu à porta dele pode bater à porta de um de nós ou da nossa família.

Sussurrando isto, benzeu-se duas vezes como quem quer atirar para longe o agouro. Maquinalmente o Novato imitou-o enquanto murmurava:

- O diabo seja cego, surdo, mudo e paralítico. Arrenega para lá a má sorte. O senhor Chico alguma vez viu o estúdio onde pinta?

- Muitas vezes. Aquilo tem pouco de estúdio. É uma barafunda impressionante. Há tintas, pincéis, telas e outras coisas por toda a cabana. O homem mal tem espaço para se mexer. Porém, desilude-te quanto a andarem os quadros andam para ali ao deus-dará. Muito arrumados, muito protegidos, uma coisa que só vista.

- Gostava de ver. Um dia em que esteja de folga e tenha de ir buscar o homem, diga-me e acompanho-o.

- Garanto que darás o tempo por bem aproveitado, Novato. Existe arte dentro e fora da cabana. O sítio é lindo. Muito verde, muita água, as madressilvas enrolam-se pelos pilares de madeira que sustentam o alpendre da cabana... Nas imediações nascem muitas orquídeas e orégãos cobrindo a terra por completo. Em volta, um pouco mais afastada, desenhou o senhor Ernesto uma sebe com piorno-dos-tintureiros.

- O que é isso Senhor Chico?

- O quê? Piorno-dos-tintureiros?

- Sim.

- Vê-se por aqui muito. Deixa que, se avistarmos algum, mostro-to. É uma planta de flores em cachos amarelos. Devido à quantidade destas plantas espontâneas por todo este monte é que deram o nome ao riacho: Riacho amarelo. Olha ali à nossa esquerda – apontava o Chico para alguns exemplares.

- Ah! Conheço.

- Ficam-te bem esses sentimentos, Chico – ironizava o Ferrugem. - O pior é que esta hora é de trabalho e luta contra o perigo. O que nos trouxe aqui foi este “bicho” assanhado que rompe pela encosta acima devorando tudo à sua passagem. Ei-lo! Tem uma frente muito grande...

- Está bravo... muito bravo.

- É natural. Com tudo tão ressequido por este calor insuportável e ainda com esta brisa a ajudar, temos trabalho para um bom bocado.

- Talvez as coisas andem mais depressa do que contamos. Estou a ver os helis a despejar água na encosta.

O jipe e os autotanques pararam no cruzamento que dá acesso aos estradões de terra batida que circundam o Vale do Estorninho e o acesso à cabana. O comandante rasgou uma folha de papel muito fino e lançou os pedacinhos ao ar. A brisa soprava fraca de leste, o que fazia adivinhar que o fogo tomaria a direção oeste. Perfilados os soldados da paz receberam ordens.

- Neste momento ainda só ardeu mato – assegurava o comandante. - Aproxima-se a grande velocidade dos pinhais e do montado. É para aí que devem levar dois autotanques e tentar evitar que ele progrida. Os helicópteros estão a colaborar connosco despejando água naquela zona o que pode poupar-nos muito esforço. Antes de começarem a atuar certifiquem-se que há condições para fugir numa emergência.

- Às ordens, meu comandante – respondeu a equipa do Barbas.

Foram os primeiros a partir, logo seguidos da equipa do chinês.

- A equipa do Chico vai lá para baixo defender a cabana e socorrer o velho que vive lá. Se as condições se alterarem, talvez seja bom recorrer ao corta fogo, porque, de certeza que deve haver ali muita erva seca e se for queimada em segurança pode garantir uma distância razoável em relação à cabana.

- Conheço bem o local – reagiu feliz pela coincidência. – Lá vou ajudar mais uma vez o Ernesto.

Tardámos a tomar posição no terreno, por recebermos ordens em último lugar, mas, principalmente, devido ao fumo intenso e ao terreno acidentado que dificultava a aproximação do local determinado pelo comando. Enquanto avançávamos, pareceu-nos que o fogo foi atiçado por forte ventania. Percebemos depois que tudo se ficou a dever à passagem e ao barulho do avião que do ar nos prestava ajuda prioritária por ter avistado uma casa.

Ao chegar à cabana gritei:

- Senhor Ernesto! Senhor Ernesto!

A porta estava fechada. Demos volta à cabana. Havia uma janela entreaberta do lado Sul. Espreitei. Ninguém. Chamei de novo.

- Senhor Ernesto! Senhor Ernesto! Sou o Chico!

Por momentos, temi que tivesse sido surpreendido pelo fogo naquelas encostas inóspitas para humanas criaturas. Depois pensei que o facto de ter a porta fechada podia ser um bom presságio: talvez estivesse para a vila ou para outro lado qualquer mesmo sem pedir ajuda aos soldados da paz.

        - E agora, senhor Chico? - inquiria o Novato aflito.

      - Tem calma, homem. É preciso conservar a serenidade. Entrar em pânico é o pior que pode acontecer a quem se vê numa situação de apuros. O perigo tem de ser olhado de frente, percebeste? 097 chama comando. Escuto.

        - Comando. Escuto 097.

       - Estamos em dificuldade. Reforçar meios aéreos para a cabana. Escuto.

        - Afirmativo. Protejam-se. Terminado.

      O fogo corria na nossa direção. Para proteger a cabana e o tapete de orquídeas frescas que lhe atapetavam a entrada, optámos por um contrafogo. Todos os cuidados seriam poucos perante o material inflamável nos rodeava. O mais pequeno descuido podia deitar tudo a perder. Os dois fogos encontraram-se. A nossa luta continuava contra a força do fogo que combatíamos quando ouço nítida uma voz que me pareceu familiar:

        - Senhor Chico, senhor Chico. Aqui para cima.

     Olhei. O Ernesto convidava-nos do meio do riacho. Do alto de uma pedra exorcizava o fogo que teimava em pôr-lhe a vida em perigo e levar-lhe tudo o que tinha. Corremos na sua direção, enquanto ele seguia regato acima com a destreza de quem conhece bem o terreno e sabe de abrigo seguro. 

      - Venham para aqui, sigam-me, que ele vem bravo – aconselhava-nos.

   Levou-nos, até uma pequena catarata onde as águas se precipitavam fazendo um lago mais largo e mais fundo. A rocha formava uma caverna que abria para esse lago. Se o fogo passasse por ali nada lhe poderia acontecer.

      - Aqui podemos estar tranquilos. É a segunda vez que me serve de refúgio nestes apuros. Um velho viu muito. Como eu me vi para recompor a vida e agora!...

      O velho ajoelhou trémulo na água. Pedia confiadamente a Deus que nos protegesse daquele inferno crescente.

 Se ainda há um deus acordado
A inclinar os ouvidos para nós
Que esqueça qualquer pecado
E nos conserve a vida e a voz.

       - Ámen - conclui sem pensar em nada.

      Olhámos uns para os outros incrédulos. Uma coluna de fumo desceu sobre nós causando apreensão. Imaginei o autotanque e a cabana a arder. O meu pesadelo foi reforçado com o anúncio:

        - Aí vem. Descontraiam-se que aqui está impedido de entrar – garantia o trémulo pintor. – Alguma vez viram a água a arder?

    Aquela pergunta de algibeira, formulada debaixo de fogo, descomprimiu um pouco a tensão que se vivia.

        A coluna de fumo desapareceu lentamente. Ousei buscar um lugar seguro de onde, sozinho, pudesse assistir impotente ao consumir da cabana e do autotanque e avaliar a distância a que se encontrava a frente do fogo. O barulho chegava até mim demasiado longínquo. Em pouco mais de cinco minutos o inferno tinha passado.

        - Novato, Ferrugem, senhor Ernesto aí em baixo estão todos bem? - Questionava com as palavras a tremer e os olhos a recusarem-se a ver tanta destruição. – Estamos salvos! Podem sair.

     Um a um foram-se levantando e dirigindo-se para mim. Olhávamos uns para os outros. Tudo queimado. Por breves instantes ninguém pronunciou palavra. Secaram-se as gargantas de medo e calor.

        - Obrigado, senhor Ernesto - sussurrei finalmente, mal refeito de tanta emoção junta. – O abrigo foi óptimo.

       - Eu é que lhes fico agradecido pois foi bem pouco o que dei e muito o que recebi. Fiz a minha obrigação. Olhem para isto. Ele passou por aqui e levou tudo pela frente. Só me restou a roupa que trago e duas moedas para comprar uma tela pois nem considero a hipótese de deixar de pintar. Passo a usar o carvão. Desapareceram tantas maravilhas...

       - Coragem, senhor Ernesto. Felizmente estamos vivos. E quanto a fogos, uns semeiam a destruição e outros purificam. Vamos ver como foi este e o que poupou à sua passagem. Quem sabe?

Há milagres que poupam vidas
Outros que as trazem de volta
Porque há entradas e saídas
Mesmo com o fogo à solta.

       - Esta é que foi uma prova de fogo!... – tremia o Novato enquanto nos aproximávamos da cabana. – Mas... Oh! Oh!... Viva! Viva! Salvou-se a cabana e o nosso carro.

        O avião despejara nafta por cima da cabana e do carro e o nosso corta fogo acalmou o ímpeto das chamas. A alegria do Ernesto chegou até às lágrimas.

        - Como hei de agradecer, senhor Chico? Levantei as mãos para o céu para que dele me viesse o auxílio e veio mesmo? Venham comer umas orelhas-de-abade muito boas. Trouxe-as ontem e dão-me prazer se aceitarem e acabarem com elas. Morra Marta, morra farta!

      - Obrigado, senhor Ernesto. Que Deus lhas acrescente - retorquiu o Ferrugem, mal recomposto do que vira. - Quando precisar de nós, cá estaremos. É a nossa missão e dívida.

      - Milagre… foi um milagre… só pode ter sido um milagre – repetia maquinalmente o senhor Ernesto. – Ainda tenho cabana!... e orquídeas. Para mim é o máximo a que posso aspirar porque:

 Qualquer espaço apertado,
Mesmo de matéria grossa,
Terá o mesmo halo sagrado
Enquanto a casa for nossa.


 Júlio Rocha (25/4/2025)

Comentários

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

CASTIGO

APRESENTAÇÃO

QUERIDO DESTINO