PROFESSOR?! PORQUINHO?!
Ao lado da que acaricia e beija:
Se aquela brilha e mal se espera,
Para a
pesca também leva os fiéis amigos?! Sim. Se na caça o ajudam, nestas ocasiões é
ele que lhes oferece a possibilidade de brincarem e treinarem a agilidade em
correrias loucas sem se afastarem consideravelmente dele. Sendo um homem que se
dá mal com tempos mortos, estes dois hobbies, ao lado de outros com menos
impacto em tempo e dinheiro, ajudam-no a aliviar o stress. Porém, a profissão
está em primeiríssimo lugar e livros, jornais, revistas e equipamento
informático são aquisições habituais, sempre com a preocupação de garantir um
lugar na linha da frente.
Com dois
momentos bem definidos da ocupação do seu tempo, a sua imagem adapta-se à
situação. Essa preocupação está presente na sua vida e sabe que se tornaria
ridículo se fosse para a caça ou a pesca de fato e gravata, como faria triste
figura se fosse para a escola de camuflado, cartucheira ou anzóis. Aos
fins-de-semana e fora do seu horário de trabalho, prima pela informalidade na
conversa e na apresentação, mas, quando se arranja para ir para a escola, nada
é deixado ao acaso nem se permite misturar ou confundir os momentos e as
atenções. Ao entrar o portão da escola, tudo o que seja do foro pessoal ou
familiar fica à porta, mas o inverso também é verdade: ao abandonar o recinto
escolar deixa de se preocupar com ocorrências, intrigas ou assuntos pendentes
da dinâmica escolar para além da preparação de aulas ou correção de trabalhos
dos alunos. Perspicaz na valorização das capacidades dos alunos que tem à sua
frente quando se movimenta dentro do recinto escolar, cedo começa a desafiá-los
a estabelecerem objetivos práticos na vida para chegarem a médicos,
engenheiros, arquitetos, militares ou bons construtores civis. O futuro
encarrega-se de lhe dar razão com frequência e isso enche-o de orgulho e
justifica o epíteto de bruxo que ouve, aceita e sorri quando, passados anos,
lhe vêm com a confirmação das suas profecias. Bruxo ou provocador, cada vez que
emite a sua previsão sobre a carreira profissional que assentaria como uma luva
a cada aluno é ouvido com algum ceticismo. Esse lado negativo é compensado com
o respeito que impõe a sua serenidade na abordagem desse tema e com o facto de
ser incapaz de aparecer frente a uma turma sem fato e gravata, mesmo nos meses
de maio e junho em que os dias quentes passam a ser normais e o excesso de
roupa se torna desconfortável para o comum dos mortais. É uma questão de
respeito pelos alunos que tem à frente e pela sua imagem de educador
responsável que concluiu por experiência que as crianças e jovens aprendem mais
pela vista e por imitação do que pelo ouvido ou pelas leituras.
Porém, se
a sua imagem como homem é impoluta e merecedor do respeito de quem teve o
privilégio de se cruzar com ele na caça, na pesca, nas atividades de carácter
desportivo, cultural, social ou assistencial, a sua imagem como profissional é
tudo menos consensual, havendo quem o ponha nos píncaros da lua e quem pura e
simplesmente o considere um sábio ultrapassado e com memória de elefante no que
tange a rancor face às afrontas que lhe deixaram cicatrizes na alma e que se
contam pelos dedos de uma mão. A nossa proximidade permite-nos afirmar com
tranquilidade que os pormenores que cita sobre essas situações confirmam que
permanecem tão presentes e dolorosos na sua vida como quando aconteceram.
Quando a vida dá razões ao sorriso
Podem ser pequenas conquistas
Se na
resolução de conflitos houve dezenas de situações bem-sucedidas, a verdade é
que na sua memória como na de todos só ficou um ou outro caso de insucesso,
como logo veremos. O mesmo acontece com os resultados académicos. Milhares de
homens e mulheres que foram seus discípulos e que singraram na vida subscrevem
a imagem de professor competente, dedicado e exigente com a fama e o proveito
de ser um homem respeitador dos alunos e de todos os que se cruzaram com ele ao
longo dos cinquenta anos a lidar com mestres, alunos, colegas e funcionários.
O leitor
poderá questionar-se sobre a origem do número apresentado quando estamos a
falar de uma pessoa com cinquenta e sete anos. É o professor Porfírio a
responder quando brinca com a sua situação e nos surpreende com a frase: «Gostei
tanto da escola ou tenho tanta dificuldade em aprender que, desde que entrei
nela aos sete anos, nunca mais a abandonei». É uma evidência: primeiro como
aluno e depois como professor, nem sequer a experiência militar perturbou essa
contagem porque coincidiu com o seu mês de férias. Aí está mais um traço da sua
personalidade: humor com as coisas mais improváveis, mas que aproveita para
descomprimir os momentos de maior tensão, cansaço e excesso de formalismo das
situações. Parece-lhe, e com resultados comprovados, que tudo é mais fácil e
produtivo quando é encarado com realismo e sem exagero na sua avaliação.
Quem o
conhece mais de perto afirma que, daquele calibre, poderá ter sido o último
exemplar saído da mão do criador na segunda metade do século passado. Há uma
hipérbole na apreciação, mas cumpre a função de o apresentar como diferente dos
outros elementos da mesma classe e da mesma idade, muitas vezes a denotarem
cansaço ou desleixo, destacando-se Porfírio pela positiva entre o grémio de
professores competentes. Sim. Competente entre competentes, havia nele alguma
vantagem.
Os alunos
que passavam pelas suas turmas levavam a sua marca e mais tarde, quando saíam
os resultados das candidaturas ao ensino superior, vinham penhoradamente
agradecer-lhe o alto grau de exigência que os ajudara a crescer em
responsabilidade, zelo e competência científica ou, numa expressão abreviada, «a
ser homem» ou «a ser mulher». Como ficava sempre feliz com essas
palavras de gratidão tantas vezes ouvidas!
Também
acontecia o inverso: acusarem-no de ser o responsável pelo fracasso de algum
preguiçoso que, na tentativa de iludir a realidade, o acusava de o ter
prejudicado, desmotivado ou simplesmente deixado à beira da estrada por lhe
recusar o apoio necessário quando as dificuldades começaram a surgir. Podia
acontecer que a culpa fosse partilhada porque, sejamos claros, Porfírio estava
longe de ser perfeito como professor, como homem, como cidadão e,
principalmente, era de todo incapaz de contrariar a natureza pouco generosa com
uns tantos e a falta de trabalho de alguns por método ou desinteresse pela sua
mensagem ou pela Filosofia na sequência de alguma zanga mal resolvida. Sabemos
o que isso representa: sempre que estão frente a frente duas posições inamovíveis,
qualquer palavra que se ouça é sempre tomada como insulto e mais complica do
que resolve.
Da parte
do mestre, a receita mais habitual e eficaz para os mal-entendidos era atirar o
caso para o rol do esquecimento funcional, mas recusou-se a funcionar numa
altercação que mantém viva na memória. Lembrava-se da pega que teve com Pompeu
numa discussão sobre a liberdade ou libertinagem a que podia chegar uma pessoa
criada sem rei nem roque.
Conduzira
a isso uma carta anónima escrita pelo aluno a uma professora estagiária nova,
bonita e solteira no âmbito da celebração do Dia de São Valentim em cuja
preparação ela se envolvera com o empenho típico de quem desejava brilhar com a
iniciativa para ajudar à sua avaliação final.
A missiva
era do piorio, numa linguagem, prenhe de asneiras e boçalidade e revelava uma
falta de respeito gratuita em relação a alguém que nem sequer lhe dava aulas. O
safado queria passar por herói. Bateu à porta errada: ouviu mais do que estava
à espera passando por diversos tons de voz, desde o sussurro paternalista e
confidencial a aconselhá-lo a assumir-se como homem e pedir desculpa à visada,
aos berros em plena turma que o castigavam como um depravado, uma vergonha
social, um delinquente que merecia mão pesada da justiça.
Romeu
inconformado com tamanha humilhação mandou-o à outra parte, chamou-lhe o que há
de pior para classificar um homem e fez peito para ele.
- Que tem
a ver com a minha vida ou com a da professora? Quere-a para si, paneleiro do
c***o? Meta-se na sua vida e deixe-nos brincar e ser felizes pelos caminhos
que preferirmos, seu corno de m***a.
- Chamas
ao insulto brincadeira? És um porco. Tem vergonha nessa cara, seu nojento –
reagiu furibundo aproximando-se dele com vontade de fazer justiça pela própria
mão.
Foi um
alvoroço geral na turma para evitar que chegassem a vias de facto. Valeu-lhes a
intervenção dos colegas que fizeram uma muralha de proteção entre duas
criaturas enfurecidas.
Ainda se
estava a meio do segundo período e nunca mais se puderam ver no que faltava de
ano. No seguinte, Romeu preferiu mudar de turma e continuar a insultá-lo à sua
passagem principalmente com gestos que mais traduziam a sua boçalidade do que
ofendiam o professor. Este tinha olhos e ouvidos e apercebia-se da besta
quadrada que tinha de aturar, mas, por outro lado, tinha família e uma longa e
promissora carreira à sua frente. Comprometê-la-ia se baixasse ao seu nível e
lhe respondesse com as palavras e murros que merecia.
Aguentou
estoicamente e aquela nefasta experiência veio confirmar o que sabia e podia
ser descurado em alguns momentos: valia a pena ser tolerante para os que,
perante o erro, são capazes de cair em si e pedir desculpa e intransigente com
quaisquer palermas que, em nome da liberdade, erram e celebram heroicamente a
sua malícia.
A vida
seguiu para os dois sem mais se cruzarem após a saída de Pompeu da escola. O
Professor acabava de assistir ao desaparecimento do seu caminho de um inimigo a
quem nem sequer se atrevia a rogar quaisquer pragas porque seria dar-lhe
demasiada importância e consolidara a imagem de «osso duro de roer» que
vinha dos anos anteriores, mesmo sem nunca se ter passado por uma situação
parecida. Sem necessidade de estar permanentemente alerta para as investidas
daquele inimigo declarado, agora estava mais liberal, mais simpático, mais
social e mais sorridente. Ajudara a isso a redescoberta do amor, interpretada
apressadamente como a entrada na fase de declínio, mas nas suas aulas mantinha
um grau de exigência acima da média e claramente dissonante do laxismo reinante.
Queria lá saber?!
Nos programas e nos manuais:
O que obedece a leis e preceitos
- Estamos
a formar uma geração que será tão válida quanto a dotemos de ferramentas que
lhes possam ser úteis na vida. Há coisas que se aprendem por osmose como a boa
educação, o respeito, a gratidão, o carinho.
- Corres
o risco de seres olhado como dinossauro e de estares a defender valores
ultrapassados – advertiu-o o diretor da escola perante os ecos que recebia dos
encarregados de educação.
- Olha
bem o meu ar de preocupado. Enquanto ninguém me demonstrar que os caminhos que
está a trilhar são mais profícuos do que os meus…
– Sabes
que os meus filhos foram teus alunos e ficaram com a melhor impressão, mas os
pais são ainda mais difíceis de aturar do que os alunos. Desconhecem os filhos
que têm na escola.
- Ainda
bem. Corariam de vergonha se soubessem metade do que nós sabemos sobre eles. É
por isso que mantenho a cruzada contra o desmoronamento social na tentativa de
criar homens e mulheres válidos para o futuro.
-
Respeito as tuas opções e espero que na relação com os alunos consigas limar as
arestas criadas pelos pais. Sabes que estamos a educar os netos da geração de
abril e estes foram criados sem valores. Tudo era válido e quando é assim...
O
professor Porfírio continuou igual a ele próprio: feliz e a deixar um rasto de
felicidade ou raiva nos alunos. Mais aquela do que esta. Cada vez que se
apercebia da existência de alguma areia na engrenagem da amizade, era o
primeiro a buscar a conciliação, mas havia situações que fugiam ao seu controlo
e se prolongavam para lá do razoável. Umas vezes acabava por ser o tempo a
anular com a sua poeira as feridas deixadas e quase sempre as férias grandes
representaram a melhor terapia para ambas as partes.
Era tão
bom quando isso acontecia e em setembro um sorriso franco entre os envolvidos
dispensava mais palavras! Foram momentos que traduziram a grandeza de quem
errara e reconheceu o erro e de quem foi ofendido e soube perdoar perante os
sinais de mudança.
O
professor tinha família e sentia-se realizado, mas também experimentava
momentos de nostalgia, particularmente durante as férias. Com tempo livre que
custava a passar, aproveitava para consultar as cadernetas das turmas que
tivera e sorria à certeza de ver ex-alunos como colegas, profissionais
liberais, nas forças de segurança, empresários de sucesso e sofria quando tinha
a informação que a vida se complicara para algum ou tinha de chorar a morte dos
que partiram na força da vida enquanto ele teria de trabalhar por mais meia
dúzia de anos e na expetativa de gozar uma reforma dourada por muitos anos.
Porém, o
mais frequente era perder o rasto à maioria. Foi o que aconteceu com Pompeu.
Tinha pouco interesse em saber novas dele, mas chegou-lhe a informação que era
polícia e que estava bem na vida. Foi Pedro que lhe trouxe essa informação e
com tanta naturalidade que só podia ser verdadeira.
- Ainda
se lembra do Pompeu, aquele que o afrontou num dia de São Valentim com
palavras, gestos e atitudes obscenas?
- Esse
porco desapareceu do meu radar desde que saiu da escola.
- Porco?!
-
Porquinho.
-
Professor?! Porquinho?!
-
Porquinho e burro, com licença dos burros: se as cabeças dos dois fossem
trocadas, o burro ficaria a perder. Ainda hoje me causa nojo só de pensar que
foi meu aluno. Nunca me cruzei com outro estafermo desse quilate.
- Estou
admirado, acredite. Nem parece o professor que conheci há mais de vinte anos.
Sabe que ele é chefe da polícia na minha esquadra e muito respeitado por todos?
-
Continuo o mesmo, Pedro. Ele é que me ofendeu tanto que ainda hoje continua
aberta a ferida que me provocou e nunca teve a humildade de reconhecer os erros
sucessivos em que caiu, nem sequer depois de os colegas terem insistido com ele
para que desse a mão à palmatória.
- Eu
sugeri-lhe isso mais do que uma vez, mas…
- E?! Nada. A farda alterou-lhe a natureza? Duvido. Quem torto nasce…
Júlio Rocha (28/4/2025)
Apreciei de sobremaneira. Parabéns. Em frente é o caminho. Abraço. Henrique António Pedro
ResponderEliminarParabéns por este conto também.
ResponderEliminarPara a frente segue o caminho.
Um abraço
É isso mesmo para a frente é que é o caminho gostei
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