PROFESSOR?! PORQUINHO?!

Conheço a palavra que dilacera
Ao lado da que acaricia e beija:
Se aquela brilha e mal se espera,
Esta mal se vê, por maior que seja.

 Porfírio, mais que tudo é um professor, mas todos lhe reconhecem uma perspicácia especial como caçador de talentos intelectuais e desportivos, para além da sua veia cinegética e piscatória, sempre acompanhado dos seus perdigueiros, renovados frequentemente por exaustão ou velhice. Raramente anda sozinho ou porque se trata de um vício que que se pega ou porque tem uma simpatia inata para atrair companheiros de qualquer idade, sendo frequente encontrar-se com atuais ou antigos alunos que, à semelhança dele, encaram o momento como uma oportunidade de convívio entre pessoas e animais, quando se trata de amantes dos fiéis amigos de quatro patas.

Para a pesca também leva os fiéis amigos?! Sim. Se na caça o ajudam, nestas ocasiões é ele que lhes oferece a possibilidade de brincarem e treinarem a agilidade em correrias loucas sem se afastarem consideravelmente dele. Sendo um homem que se dá mal com tempos mortos, estes dois hobbies, ao lado de outros com menos impacto em tempo e dinheiro, ajudam-no a aliviar o stress. Porém, a profissão está em primeiríssimo lugar e livros, jornais, revistas e equipamento informático são aquisições habituais, sempre com a preocupação de garantir um lugar na linha da frente.

Com dois momentos bem definidos da ocupação do seu tempo, a sua imagem adapta-se à situação. Essa preocupação está presente na sua vida e sabe que se tornaria ridículo se fosse para a caça ou a pesca de fato e gravata, como faria triste figura se fosse para a escola de camuflado, cartucheira ou anzóis. Aos fins-de-semana e fora do seu horário de trabalho, prima pela informalidade na conversa e na apresentação, mas, quando se arranja para ir para a escola, nada é deixado ao acaso nem se permite misturar ou confundir os momentos e as atenções. Ao entrar o portão da escola, tudo o que seja do foro pessoal ou familiar fica à porta, mas o inverso também é verdade: ao abandonar o recinto escolar deixa de se preocupar com ocorrências, intrigas ou assuntos pendentes da dinâmica escolar para além da preparação de aulas ou correção de trabalhos dos alunos. Perspicaz na valorização das capacidades dos alunos que tem à sua frente quando se movimenta dentro do recinto escolar, cedo começa a desafiá-los a estabelecerem objetivos práticos na vida para chegarem a médicos, engenheiros, arquitetos, militares ou bons construtores civis. O futuro encarrega-se de lhe dar razão com frequência e isso enche-o de orgulho e justifica o epíteto de bruxo que ouve, aceita e sorri quando, passados anos, lhe vêm com a confirmação das suas profecias. Bruxo ou provocador, cada vez que emite a sua previsão sobre a carreira profissional que assentaria como uma luva a cada aluno é ouvido com algum ceticismo. Esse lado negativo é compensado com o respeito que impõe a sua serenidade na abordagem desse tema e com o facto de ser incapaz de aparecer frente a uma turma sem fato e gravata, mesmo nos meses de maio e junho em que os dias quentes passam a ser normais e o excesso de roupa se torna desconfortável para o comum dos mortais. É uma questão de respeito pelos alunos que tem à frente e pela sua imagem de educador responsável que concluiu por experiência que as crianças e jovens aprendem mais pela vista e por imitação do que pelo ouvido ou pelas leituras.

Porém, se a sua imagem como homem é impoluta e merecedor do respeito de quem teve o privilégio de se cruzar com ele na caça, na pesca, nas atividades de carácter desportivo, cultural, social ou assistencial, a sua imagem como profissional é tudo menos consensual, havendo quem o ponha nos píncaros da lua e quem pura e simplesmente o considere um sábio ultrapassado e com memória de elefante no que tange a rancor face às afrontas que lhe deixaram cicatrizes na alma e que se contam pelos dedos de uma mão. A nossa proximidade permite-nos afirmar com tranquilidade que os pormenores que cita sobre essas situações confirmam que permanecem tão presentes e dolorosos na sua vida como quando aconteceram.

O tempo passa sem dar nas vistas
Quando a vida dá razões ao sorriso
Podem ser pequenas conquistas
No cumprimento do que é preciso.

Se na resolução de conflitos houve dezenas de situações bem-sucedidas, a verdade é que na sua memória como na de todos só ficou um ou outro caso de insucesso, como logo veremos. O mesmo acontece com os resultados académicos. Milhares de homens e mulheres que foram seus discípulos e que singraram na vida subscrevem a imagem de professor competente, dedicado e exigente com a fama e o proveito de ser um homem respeitador dos alunos e de todos os que se cruzaram com ele ao longo dos cinquenta anos a lidar com mestres, alunos, colegas e funcionários.

O leitor poderá questionar-se sobre a origem do número apresentado quando estamos a falar de uma pessoa com cinquenta e sete anos. É o professor Porfírio a responder quando brinca com a sua situação e nos surpreende com a frase: «Gostei tanto da escola ou tenho tanta dificuldade em aprender que, desde que entrei nela aos sete anos, nunca mais a abandonei». É uma evidência: primeiro como aluno e depois como professor, nem sequer a experiência militar perturbou essa contagem porque coincidiu com o seu mês de férias. Aí está mais um traço da sua personalidade: humor com as coisas mais improváveis, mas que aproveita para descomprimir os momentos de maior tensão, cansaço e excesso de formalismo das situações. Parece-lhe, e com resultados comprovados, que tudo é mais fácil e produtivo quando é encarado com realismo e sem exagero na sua avaliação.

Quem o conhece mais de perto afirma que, daquele calibre, poderá ter sido o último exemplar saído da mão do criador na segunda metade do século passado. Há uma hipérbole na apreciação, mas cumpre a função de o apresentar como diferente dos outros elementos da mesma classe e da mesma idade, muitas vezes a denotarem cansaço ou desleixo, destacando-se Porfírio pela positiva entre o grémio de professores competentes. Sim. Competente entre competentes, havia nele alguma vantagem.

Os alunos que passavam pelas suas turmas levavam a sua marca e mais tarde, quando saíam os resultados das candidaturas ao ensino superior, vinham penhoradamente agradecer-lhe o alto grau de exigência que os ajudara a crescer em responsabilidade, zelo e competência científica ou, numa expressão abreviada, «a ser homem» ou «a ser mulher». Como ficava sempre feliz com essas palavras de gratidão tantas vezes ouvidas!

Também acontecia o inverso: acusarem-no de ser o responsável pelo fracasso de algum preguiçoso que, na tentativa de iludir a realidade, o acusava de o ter prejudicado, desmotivado ou simplesmente deixado à beira da estrada por lhe recusar o apoio necessário quando as dificuldades começaram a surgir. Podia acontecer que a culpa fosse partilhada porque, sejamos claros, Porfírio estava longe de ser perfeito como professor, como homem, como cidadão e, principalmente, era de todo incapaz de contrariar a natureza pouco generosa com uns tantos e a falta de trabalho de alguns por método ou desinteresse pela sua mensagem ou pela Filosofia na sequência de alguma zanga mal resolvida. Sabemos o que isso representa: sempre que estão frente a frente duas posições inamovíveis, qualquer palavra que se ouça é sempre tomada como insulto e mais complica do que resolve.

Da parte do mestre, a receita mais habitual e eficaz para os mal-entendidos era atirar o caso para o rol do esquecimento funcional, mas recusou-se a funcionar numa altercação que mantém viva na memória. Lembrava-se da pega que teve com Pompeu numa discussão sobre a liberdade ou libertinagem a que podia chegar uma pessoa criada sem rei nem roque.

Conduzira a isso uma carta anónima escrita pelo aluno a uma professora estagiária nova, bonita e solteira no âmbito da celebração do Dia de São Valentim em cuja preparação ela se envolvera com o empenho típico de quem desejava brilhar com a iniciativa para ajudar à sua avaliação final.

A missiva era do piorio, numa linguagem, prenhe de asneiras e boçalidade e revelava uma falta de respeito gratuita em relação a alguém que nem sequer lhe dava aulas. O safado queria passar por herói. Bateu à porta errada: ouviu mais do que estava à espera passando por diversos tons de voz, desde o sussurro paternalista e confidencial a aconselhá-lo a assumir-se como homem e pedir desculpa à visada, aos berros em plena turma que o castigavam como um depravado, uma vergonha social, um delinquente que merecia mão pesada da justiça.

Romeu inconformado com tamanha humilhação mandou-o à outra parte, chamou-lhe o que há de pior para classificar um homem e fez peito para ele.

- Que tem a ver com a minha vida ou com a da professora? Quere-a para si, paneleiro do c***o? Meta-se na sua vida e deixe-nos brincar e ser felizes pelos caminhos que preferirmos, seu corno de m***a.

- Chamas ao insulto brincadeira? És um porco. Tem vergonha nessa cara, seu nojento – reagiu furibundo aproximando-se dele com vontade de fazer justiça pela própria mão.

Foi um alvoroço geral na turma para evitar que chegassem a vias de facto. Valeu-lhes a intervenção dos colegas que fizeram uma muralha de proteção entre duas criaturas enfurecidas.

Ainda se estava a meio do segundo período e nunca mais se puderam ver no que faltava de ano. No seguinte, Romeu preferiu mudar de turma e continuar a insultá-lo à sua passagem principalmente com gestos que mais traduziam a sua boçalidade do que ofendiam o professor. Este tinha olhos e ouvidos e apercebia-se da besta quadrada que tinha de aturar, mas, por outro lado, tinha família e uma longa e promissora carreira à sua frente. Comprometê-la-ia se baixasse ao seu nível e lhe respondesse com as palavras e murros que merecia.

Aguentou estoicamente e aquela nefasta experiência veio confirmar o que sabia e podia ser descurado em alguns momentos: valia a pena ser tolerante para os que, perante o erro, são capazes de cair em si e pedir desculpa e intransigente com quaisquer palermas que, em nome da liberdade, erram e celebram heroicamente a sua malícia.

A vida seguiu para os dois sem mais se cruzarem após a saída de Pompeu da escola. O Professor acabava de assistir ao desaparecimento do seu caminho de um inimigo a quem nem sequer se atrevia a rogar quaisquer pragas porque seria dar-lhe demasiada importância e consolidara a imagem de «osso duro de roer» que vinha dos anos anteriores, mesmo sem nunca se ter passado por uma situação parecida. Sem necessidade de estar permanentemente alerta para as investidas daquele inimigo declarado, agora estava mais liberal, mais simpático, mais social e mais sorridente. Ajudara a isso a redescoberta do amor, interpretada apressadamente como a entrada na fase de declínio, mas nas suas aulas mantinha um grau de exigência acima da média e claramente dissonante do laxismo reinante. Queria lá saber?!

Há dois mundos quase perfeitos
Nos programas e nos manuais:
O que obedece a leis e preceitos
E o que acha que tudo é demais.

- Estamos a formar uma geração que será tão válida quanto a dotemos de ferramentas que lhes possam ser úteis na vida. Há coisas que se aprendem por osmose como a boa educação, o respeito, a gratidão, o carinho.

- Corres o risco de seres olhado como dinossauro e de estares a defender valores ultrapassados – advertiu-o o diretor da escola perante os ecos que recebia dos encarregados de educação.

- Olha bem o meu ar de preocupado. Enquanto ninguém me demonstrar que os caminhos que está a trilhar são mais profícuos do que os meus…

– Sabes que os meus filhos foram teus alunos e ficaram com a melhor impressão, mas os pais são ainda mais difíceis de aturar do que os alunos. Desconhecem os filhos que têm na escola.

- Ainda bem. Corariam de vergonha se soubessem metade do que nós sabemos sobre eles. É por isso que mantenho a cruzada contra o desmoronamento social na tentativa de criar homens e mulheres válidos para o futuro.

- Respeito as tuas opções e espero que na relação com os alunos consigas limar as arestas criadas pelos pais. Sabes que estamos a educar os netos da geração de abril e estes foram criados sem valores. Tudo era válido e quando é assim...

O professor Porfírio continuou igual a ele próprio: feliz e a deixar um rasto de felicidade ou raiva nos alunos. Mais aquela do que esta. Cada vez que se apercebia da existência de alguma areia na engrenagem da amizade, era o primeiro a buscar a conciliação, mas havia situações que fugiam ao seu controlo e se prolongavam para lá do razoável. Umas vezes acabava por ser o tempo a anular com a sua poeira as feridas deixadas e quase sempre as férias grandes representaram a melhor terapia para ambas as partes.

Era tão bom quando isso acontecia e em setembro um sorriso franco entre os envolvidos dispensava mais palavras! Foram momentos que traduziram a grandeza de quem errara e reconheceu o erro e de quem foi ofendido e soube perdoar perante os sinais de mudança.

O professor tinha família e sentia-se realizado, mas também experimentava momentos de nostalgia, particularmente durante as férias. Com tempo livre que custava a passar, aproveitava para consultar as cadernetas das turmas que tivera e sorria à certeza de ver ex-alunos como colegas, profissionais liberais, nas forças de segurança, empresários de sucesso e sofria quando tinha a informação que a vida se complicara para algum ou tinha de chorar a morte dos que partiram na força da vida enquanto ele teria de trabalhar por mais meia dúzia de anos e na expetativa de gozar uma reforma dourada por muitos anos.

Porém, o mais frequente era perder o rasto à maioria. Foi o que aconteceu com Pompeu. Tinha pouco interesse em saber novas dele, mas chegou-lhe a informação que era polícia e que estava bem na vida. Foi Pedro que lhe trouxe essa informação e com tanta naturalidade que só podia ser verdadeira.

- Ainda se lembra do Pompeu, aquele que o afrontou num dia de São Valentim com palavras, gestos e atitudes obscenas?

- Esse porco desapareceu do meu radar desde que saiu da escola.

- Porco?!

- Porquinho.

- Professor?! Porquinho?!

- Porquinho e burro, com licença dos burros: se as cabeças dos dois fossem trocadas, o burro ficaria a perder. Ainda hoje me causa nojo só de pensar que foi meu aluno. Nunca me cruzei com outro estafermo desse quilate.

- Estou admirado, acredite. Nem parece o professor que conheci há mais de vinte anos. Sabe que ele é chefe da polícia na minha esquadra e muito respeitado por todos?

- Continuo o mesmo, Pedro. Ele é que me ofendeu tanto que ainda hoje continua aberta a ferida que me provocou e nunca teve a humildade de reconhecer os erros sucessivos em que caiu, nem sequer depois de os colegas terem insistido com ele para que desse a mão à palmatória.

- Eu sugeri-lhe isso mais do que uma vez, mas…

- E?! Nada. A farda alterou-lhe a natureza? Duvido. Quem torto nasce…

Júlio Rocha (28/4/2025)

Comentários

  1. Apreciei de sobremaneira. Parabéns. Em frente é o caminho. Abraço. Henrique António Pedro

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  2. Parabéns por este conto também.
    Para a frente segue o caminho.
    Um abraço

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  3. Anónimo2/5/25 11:53

    É isso mesmo para a frente é que é o caminho gostei

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